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O Saque



De 14 a 26 de Novembro no Teatro Nacional São João, Porto

Teatro Nacional S. João
Praça da Batalha
4000-102 PORTO

Linha Verde 800-10-8675
www.tnsj.pt
geral@tnsj.pt
21 843 88 00

terça-feira a sábado [21:30] domingo [16:00]

“Acho que acredito no Pecado Original. As pessoas são profundamente más, mas infinitamente cómicas” (Joe Orton).

O Saque não é apenas uma devastadora comédia de (muito maus) costumes, é um objecto farsesco que desliza para a quintessência da derisão social, o absurdo. Indestrutível mecânica de acção e um diálogo à altura da mais coruscante violência verbal inglesa iniciam-nos na descoberta deste Oscar Wilde da fina flor da Segurança Social, do Estado Providência, da classe trabalhadora, do entulho! Um policial muito negro, em directo!


de >> Joe Orton
tradução >> Luísa Costa Gomes

encenação >> Ricardo Pais
cenografia >> Pedro Tudela
figurinos >> Bernardo Monteiro
sonoplastia >> Francisco Leal
desenho de luz >> Nuno Meira

elenco >> Hugo Torres, Jorge Mota, José Eduardo Silva, Lígia Roque, Paulo Freixinho, Pedro Almendra
e os figurantes >> Marta Pires, André Joly

produção >> TNSJ

Entrevista Ricardo Pais

“O filme aqui é muito noir e o humor é de um negro quase chocante”

Voltámos a aceitar o desafio sempre estimulante de Ricardo Pais para fabricarmos uma entrevista em torno de O Saque. A partir de início de Outubro, os ensaios sucederam-se e as questões foram surgindo. Nesta conversa por etapas, fomos falando da comédia e do humor (português e britânico), da carga política de Orton, do espaço cénico, dos encenadores com marca de autor que “trabalham para o teatro”, das memórias da “Swinging London” e, sobretudo, da opção por “um autor cuja concisão escrita” permitiu ao encenador reflectir sobre os limites da sua própria fantasia, para lá de qualquer registo pretensamente realista. Rodrigo Affreixo

Rodrigo Affreixo Até que ponto é que foi resgatar esta peça à sua memória de Londres, na transição dos anos 60/70?

Ricardo Pais Quando cheguei a Londres, vi What the Butler Saw e achei uma alucinação britânica no melhor sentido “comercial”. Quando, muitos anos mais tarde, vi no Royal Court Entertaining Mr. Sloane (com os inesquecíveis Beryl Reid e Malcolm McDowell), percebi quão violenta era a dentada que o já então assassinado e mitificado autor tinha ferrado nas canelas da sociedade e do establishment teatral. Pensei, depois, várias vezes em O Saque, que nunca vi no palco. Li-o várias vezes e pensei na enormidade de trabalho para o nosso jovem cast e, com a minha imodéstia, disse: “Vamos aprender isto”; ou antes: “Vamos pôr isto em nós” – uma “impossibilidade técnica”, mas uma aventura que só o palco admite.

RA Essa aventura passa pela dificuldade de colocar os actores a fazerem comédia e, neste caso, comédia britânica de humor negro, algo muito distanciado do registo cómico português…

RP Não tenho a certeza se existe sequer um registo cómico português, porque a sensação que recolho do que vou vendo em televisão e em teatro é a de que, à parte um breve período mais ou menos histórico do que se poderia ter chamado a “escola Herman José de comicidade” – e que foi quase um hiato, na verdade –, desde a comédia portuguesa dos anos 30 que não há realmente enraizada uma técnica de comédia à portuguesa. E não há, também, a escrita da comédia à portuguesa para essa técnica. Posso lembrar que o sucesso da encenação de Nunca Nada de Ninguém, da Luísa Costa Gomes1, se deveu justamente àquele conjunto de actores que tinha criado uma espécie de détachement, de distanciamento, de fluidez e de alguma frieza em relação ao texto, que vinha precisamente do grupo do Herman, o que é engraçado (a Rita Blanco, a Lídia Franco, etc.). Por essa altura, até pela coloquialidade cómica da própria Luísa, eu achei que estávamos a começar a criar uma coisa nova e alternativa à velha tradição dos anos 30, que está sempre a regressar (nos Malucos do Riso, no amadorismo insustentável de O Gato Fedorento, nessa enorme multinacional da mistificação que são as Produções Fictícias, etc.). Entretanto, pode dizer-se que isto tudo se dissolve, de alguma maneira, hoje em dia. A chamada “qualidade Herman” já está afastada do nosso horizonte há muito tempo. A sensação que eu tenho é um pouco a de que de cada vez que tem de se fazer comédia se está a fazer de novo. E fazer comédias clássicas é uma coisa, fazer comédias de coloquialidade aparentemente mais próxima do nosso tempo, mais contemporâneas, é outra diferente ainda. Dentro do chamado “cómico inglês”, que tem uma técnica muito particular e muito própria (técnica essa que começa na própria escrita), o Orton tem um papel muito especial, porque usa frases extremamente curtas, uma sequência de incidentes mais ou menos alucinada e tem uma visão completamente impiedosa do destino das personagens; ele acha que elas estão condenadas à partida. Nessa medida, ele sente que a farsa – que é o género em que ele encaixa o seu próprio teatro – está mais próxima da tragédia do que da comédia, e que lhe interessa muito mais. A escrita dele tem realmente problemas complicados, porque não é feita para causar efeito e gargalhada no final de uma frase, não tem propriamente punchlines um pouco ao invés do que os americanos consideram comedy, mas é muito a favor de uma tradição de verbalidade burlesca, de coloquialidade muito rápida que passa pela integração das imagens que constroem a frase com uma total irrisão da entoação naturalista, que parece aparentemente não ter relação nenhuma com o interior, com o “de dentro”, com o sentido da personagem. Aí, sim, à técnica dos comediants ingleses ele foi buscar muito, mas foi buscar muito na própria escrita, e é isso que, de alguma maneira, é preciso identificar. Nós temos muita dificuldade em sermos divertidos com uma frase sem a encher de corpo e os ingleses são especialistas em serem cómicos com uma frase porque a esvaziam completamente de qualquer sensualidade. Depois, não temos uma língua tão sinuosa como a inglesa, o que dá que, necessariamente, numa tradução, o Orton parece perder alguma coisa. Os ingleses têm uma coloquialidade facílima, falam-barato a toda a hora, estão sempre a ouvir-se a si próprios falar e muitas vezes não estão a fazer nada com a fala a não ser produzir som, a ouvir-se a si mesmos e a criarem, por aí, uma qualquer ilusão de comunicação. Isso tem muito pouco a ver connosco. No fundo, o texto sempre foi, como o Thomas Bernhard já diz em Minetti2, como “pôr uma máscara à frente da cara” – é como ter o texto fora da cabeça. E isto está em total contrariedade com o espírito latino, com o espírito do Sul, e ainda por cima num país como o nosso.

RA Até que ponto é que o rigor do trabalho de actor foi, neste caso, levado ainda mais longe do que é habitual no seu trabalho?

RP É engraçado como vemos os franceses fazerem Oscar Wilde e fazem muito mal; vemos os ingleses fazerem Feydeau e fazem normalmente muito mal. Mas fazem muito bem, porque as tradições técnicas de cada um dos seus países a representar comédia, boulevard sobretudo, nos seus variados níveis e velocidades, são muito fortes, aquilo que está em ruptura ou em capacidade de percepção do outro lado tem, apesar de tudo, uma infra-estrutura técnica forte, coisa que connosco não acontece. Nesse sentido, é difícil e o rigor do trabalho de actor de que fala é importantíssimo.

RA O Saque é uma farsa, que é um género até hoje pouco presente no seu trabalho… Joe Orton é um autor que até agora tinha sido encenado entre nós por Luis Miguel Cintra, Jorge Silva Melo, Almeno Gonçalves ou Norberto Barroca… O Saque é uma peça com uma forte carga política, sexual, anti-clerical, anti-policial… A partir de UBUs – Um contributo para a desdramatização da pátria3, sentiu-se compelido a fazer um tipo de teatro mais interventivo, aqui e agora?

RP Não! Sempre fui seduzido pela linha de fronteira entre a vida de personagens (ou de figuras como Dom Ubu) e a sua possível demência. Já era por aí que começara (muito a montante da própria preparação) As Lições4, um género avalizado pela marca do absurdo. Ora, o absurdo está tanto no coração dos Marx Brothers como no de Orton. Só que este insistia num compromisso cénico entre o absoluto realismo e a irrisão obnóxia que a vida real provoca, até e principalmente no esvaziado linguarejar quotidiano. Esse esvaziamento é povoado, depois, pelo gosto da pulverização dos tabus, das idiossincrasias médio-burguesas. É muito político, já que pergunta. Mas Orton optava pela farsa, porque ao invés da acidentada sobrevivência na comédia, a acha próxima da inexorabilidade da tragédia. Em O Saque, o encadeado vertiginoso de acontecimentos não leva senão à deificação dos corruptos e à imolação do ridículo cordeiro pequeno-burguês, chefe de família. Mais morto, menos morto, tanto faz. E é cómico, de uma teatralidade quase oposta à desregra de Ubu (em todas as dimensões da obra e da figura). Não me sinto compelido a fazer intervenção sistemática, mas por momentos é um prazer ouvir dizer as coisas mais bárbaras sobre o que sempre considerámos incontornavelmente cívico – desculpa-nos de não ir à missa, sabe?

RA O Saque tem uma estrutura quase de comédia de boulevard (embora muito subvertida no seu conteúdo), com plena unidade de espaço-tempo: uma sala, ao longo de um dia. Tem, também, muito a ver com alguma memória de humor negro, de nonsense e de crimes sofisticados e/ou desastrados no cinema: Arsenic and Old Lace5, Monsieur Verdoux6, Rope7, The Lady Killers8, I Soliti Ignoti9 ou Peeping Tom10, entre muitas outras referências possíveis. Aqui radica a sua opção por criar o centro de acção em clima preto-e-branco, ladeado por duas áreas coloridas para saídas de cena, em ambiente de estúdio de cinema ou televisão?

RP Não. Radica muito mais nos vídeos de Michel Gondry ou Anton Corbijn, embora esses fossem alguns dos filmes que o elenco viu comigo. O filme aqui é muito noir e o humor é de um negro quase chocante. Este espectáculo esteve para ser feito também para os estúdios da Tobis (que em breve faz cem anos). A ideia desta compartimentação cor-pb-cor surgiu-me do luto e da imagem daquilo que brilha no escuro – uma interplanetária Nossa Senhora de Fátima fluorescente, por exemplo… Isto permite-nos explorar de forma totalmente inesperada a diferença interior – um só quarto onde tudo se passa segundo as canhestras didascálias do Orton – e exterior – com uma permeabilidade que estende o quarto (os seus elementos) para os espaços laterais, criando uma paisagem psiquiátrica que inscreve lá dentro a inexorabilidade quase vazia do quadrado negro.

RA Esta opção pelos cenários a preto-e-branco passa pela memória da primeira encenação da peça (Peter Wood, 1965), que também recorria a este artifício? Ou pelo facto de várias das peças de Joe Orton terem sido feitas para tele-teatro, nos anos 60?

RP A decisão foi quase anterior às releituras “finais” da peça. Só depois soube da opção de Peter Wood, aliás igualzinha à que Osório Mateus usou em 1963 na sua encenação de O Meu Caso com os alunos do liceu de Viseu e que foi iniciática para mim!

RA Nos espectáculos Figurantes (2004)11 e UBUs (2005), Pedro Tudela criou cenografias num registo muito pouco naturalista – quase abstracto no primeiro caso, quase surrealista no segundo. Como é que o trabalho nestas áreas foi conduzido, neste caso, numa peça que remete para uma realidade quotidiana?

RP O que o Rodrigo quer dizer é que nem em UBUs nem em Figurantes o espaço era claro… No caso de Figurantes era um mistério até ao fim. E também não há propriamente apontamentos de interior, a situação típica de casa. O Truscott diz, a determinada altura, uma frase muito engraçada: “O que se passou ainda agora é perfeitamente escandaloso e é melhor nem sair destas três paredes”. O que quer dizer que o Orton está, conscientemente, a desenhar uma peça para ser feita com a quarta parede aberta sobre o público (podemos ver isto à luz da teoria de Antoine como iminentemente reaccionário ou como uma inside joke sobre as doenças incuráveis do West End londrino). Mas na convicção de que se trata de uma peça (como ele gostaria) realista; portanto, que funcionará particularmente bem se o caixão parecer um caixão, se a sala for uma sala, se as paredes parecerem paredes e as portas também. Nesse aspecto, o programa era obviamente diferente do que foi o de Figurantes ou o de UBUs. Este último era um espectáculo de terreiro, não propriamente de espaço cénico. Neste caso, nós começámos por querer fazer uma sala, com três paredezinhas. E a minha ideia era manter-me muito fiel à, digamos, convicção do Orton. Acontece que o Orton nasceu, cresceu e morreu (infelizmente muito prematuramente) num país onde a encenação, ainda hoje, não se sabe muito bem o que é. Sempre se tratou de criar os mecanismos, às vezes mais convencionais, para pôr os actores a funcionarem na situação. E é quase só isso em que consiste dirigir lá na ilha – que continua a criar um dos dictats dramatúrgicos, de raiz realista, para os milhões de corações solitários que vão fazendo teatro de boa consciência por esta Europa autista. Passaram muitos anos sobre a morte do Orton. Ele parece-me novo, porque vivi estes anos todos sempre com ele por perto, e na realidade há muita coisa que sobrevive maravilhosamente nos seus textos. Mas a verdade é que o teatro evoluiu imenso e que hoje em dia é possível desdobrar, desplanificar, abstractizar ou, pura e simplesmente, distorcer (se quisermos, até, à maneira expressionista) a realidade de uma sala tridimensional até transformá-la num objecto performativo outro. E foi isso que tentou fazer o Pedro Tudela. Pretendemos uma certa autonomia enquanto instalação do Pedro, que não sacrificasse a presença obsessiva do quarto. Esse era o desafio.

RA “A peça, claramente, não foi escrita de um modo naturalista, mas deve ser encenada e representada com um realismo absoluto”, referiu Joe Orton a propósito da passagem a teatro de The Ruffian on the Stair (logo a seguir à experiência malograda de O Saque em palco), acrescentando: “Nada de ‘estilizado’, nada de ‘modernaço’. Não deve ser feita qualquer tentativa de igualar a extravagância dos diálogos do autor com uma extravagância da encenação”12. Como é que um encenador com um estilo tão marcado faz para respeitar estas indicações do autor? Ou não as respeita de todo?

RP Eu não tenho de ter mais respeito pelo Joe Orton do que tenho por Shakespeare, que é infinitamente maior. E não tenho nenhum depoimento tão veemente nem tão incongruente, como este do Orton, vindo do Shakespeare. Portanto, na realidade, o que uma pessoa tem de fazer é trabalhar o texto como o entende, da maneira que o entende e de que é capaz. Digamos que o Orton é, infelizmente, com o atraso característico do teatro inglês, um dinossauro anterior à ideia do encenador como autor, que nesta altura já era mais do que difundida. Ele diz, por exemplo, que não deixou que a Joan Littlewood (que foi uma brechtiana e uma das mais extraordinárias criadoras/formadoras de todo o teatro inglês do séc. XX) lhe fizesse uma das peças. Dizia ele: “Ela vai criar personagens novas, vai inventar frases e vai-me trocar tudo”. Quer dizer, eram rapazes como o Orton que procuravam encenadores que distribuíssem rigorosamente a receita dita literário-teatral na boca de actores que fossem, eles próprios, títeres desse mesmo conceito. A ideia da interpretação da obra e da sua transformação por um intermediário qualquer, chamado encenador ou realizador (isto foi escrito quando o Hitchcock estava no seu apogeu), pura e simplesmente está fora deste contexto. Esta gente queria ter sucesso no West End. E como toda essa gente sofreu, inevitavelmente, de um profundo e muito reaccionário atraso em relação ao desenvolvimento do teatro continental, dir-se-ia que acabava por trabalhar para o seu texto e não para o teatro.

RA Havia, portanto, o recurso a encenadores tipo funcionário, que fossem meros executantes daquilo que se pretendia?

RP É curioso, porque há aqui um equívoco grande. O Joe Orton foi produzido pelo Oscar Lewenstein e pelo Michael White (que são, aliás, personagens que eu conheci pessoalmente e com muito gosto, na altura, em Londres), que eram empresários que se ocuparam do Royal Court e de outros lugares e que, de facto, tinham um conceito de teatro muito arejado para aquela época, sempre apostando em novos autores ingleses. Não estamos a falar propriamente de comerciantes culturais, mas esta gente servia ainda um conceito de teatro que tinha de ter um grau de eficácia com o qual se identifica normalmente o teatro dito “comercial”. Quando o John Russell Taylor, numa primeira edição de obras do Orton, afirmou que O Saque “indicava com alguma precisão aquilo que pode e não pode ser apresentado no teatro comercial dos dias de hoje”, ele ficou muito ofendido: “Shakespeare também era comercial, no seu tempo”, afirmou. Resta saber se a démarche formal de Orton é suficientemente radical para o elevar do universo do lucro directo – seja ele financeiro ou outro – ou se, pura e simplesmente, não houve, desde o final de guerra inglês, uma realidade paralela à que foi a realidade isabelina, que permitisse que a sobrevivência das artes cénicas se fizesse, apesar da necessidade de sucesso, que é uma utopia recorrente.

RA Para lá do clima gótico de tonalidades hitchcockianas anteriormente tão bem explorado na sua encenação da ópera The Turn of the Screw13, remete agora o ambiente sombrio deste espectáculo para o gótico “popsy” de Anton Corbijn… Ao “realismo absoluto” proposto por Joe Orton contrapõe algum psicadelismo muito típico da Inglaterra dos anos 60 (embora não adoptado pelo autor, à época), bem como alguns oportunos flashes de música pop. Estamos, ainda, perante o cruzamento do seu culto pelas variedades com o rigor das didascálias?

RP Orton relata que foi a casa do Paul McCartney para decidir do tal filme que iria escrever para os Beatles14. Ouviu lá em casa duas canções, uma das quais chamada “Penny Lane”, de que ele gostou muito, e outra que era “Strawberry’s something”, diz ele (era “Strawberry Fields Forever”), que não lhe pareceu tão bem. A seguir, conta que a conversa se distendeu sobre as drogas. Ele disse que tinha fumado uns haxixes com o Halliwell, nas suas aventuras mais ou menos protopedófilas em Marrocos. E a conversa, diz ele, pareceu distender-se, a partir daí. Quer dizer, estamos a viver com uma personagem que não sabe que “Strawberry Fields Forever” se refere a uma qualidade específica de LSD. Estamos a falar de uma criatura que está realmente na fronteira entre o gloom absoluto dos anos 50 ingleses e o swing absoluto dos anos 60 londrinos. Uma mente psicadélica pode ser a mente do Jaime, que fazia os desenhos que o António Reis imortalizou15, ou a toleima dos Beatles a pintarem os seus Bentleys e os seus Rolls-Royces com florzinhas, mais as meditações transcendentais, etc. Há muitas formas de flipar… O Orton tinha uma forma muito, muito rígida e pessoal de o fazer. Era por dentro da própria escrita, até encontrar na sua síntese estilística o essencial da sua loucura. Isto não tem nada a ver com a “Swinging London”. Não podemos também imaginar o que seria hoje o Joe Orton, com 70 e tal anos, a ver os vídeos do Anton Corbijn, que estarão muito mais próximos daquilo que ele sempre pensou que o realismo era (ou do que ele pretensamente escreveu sobre ele, porque eu acho que ele é o menos realista dos autores!). Quanto às didascálias do Orton, no que me diz respeito, ignorei-as completamente. Muitas vezes, dizem-me, durante os ensaios: “Mas na didascália dizia…”. Eu esqueci-me completamente. Eu nunca fui muito de olhar para as didascálias, porque acho que os autores são péssimos encenadores. Eu nunca achei que os autores tivessem, aliás, de o ser. E o Orton provavelmente também não achava. Ou então achava, só que tinha de ter um sopeiro qualquer que lhe fizesse o recado. Que o levasse ao sucesso, que ele muito denodadamente desejava. Agora, o que me seduz no Orton não é, de todo, a variedade ou a proliferação de imaginários. Eu acho que ele tem, aliás, um imaginário relativamente restrito. Se o espectáculo se esparrama em direcções inesperadas, é porque a escrita é de tal maneira concisa que só nos pode convidar à transgressão. Não estamos ainda a falar dos textos dos Monty Python (que já representam, esses sim, uma ressaca outra, completamente diferente), mas de um autor cuja concisão escrita nos obriga a avaliar a legitimidade da nossa própria fantasia. Eu sou uma vítima das contradições profundas da cultura inglesa e um observador muito atento daquilo que o John Havelda muito bem descreve no nosso programa – a “Swinging London”, como ilusão relativa. É um epifenómeno económico-cultural, que tem muito mais a ver com música e com moda do que com qualquer outra coisa. Não tem nada a ver com a Manchester onde eu ia com os meus colegas de escola comer roast beef com três vegetais e Yorkshire pudding, ao domingo, à beira das fábricas, e onde as marcas do racionamento ainda eram muito visíveis. Eu lavei pratos e copos nos sítios onde passava o John Barry, que compunha a música para os filmes do 007… O nosso dossier de actor abre com uma citação do “Álvaro” [Alvaro Maccioni], que era o restaurateur mais célebre de Londres quando eu cheguei e que foi o primeiro homem que me empregou. Eu não podia achar mais graça que a Paula Braga tivesse feito essa escolha. Eu entrava naquele restaurante, que era mínimo (a minha madrinha de casamento foi a recepcionista), era um terço deste onde estamos agora, e estava o Mick Jagger, o Rod Stewart, a Ursula Andress, o Sean Connery… E esta gente parecia criar um mundo novo… Não: criavam um negócio novo, estavam a criar um progresso novo para o país. Mas é 68, o Orton, coitado, já tinha levado não sei quantas marteladas na cabeça e já tinha tido a mais sórdida das mortes no seu pequeno apartamento conjugal. Estamos a falar claramente de um autor de transição cuja cultura literária era fantástica, cujo ressentimento social era um estímulo e cujo amor à violência da linguagem dos chamados “autores de estilo” (Wilde, comédia da Restauração, etc.) era profundíssimo. Não deixa de ser uma personagem em trânsito, uma personagem de fronteira. Olhar para Orton hoje é-me menos reverencial do que olhar para qualquer clássico, mas muito mais sordidamente intrigante.

RA Em comum com os seus espectáculos mais recentes, O Saque conta apenas com a presença de uma personagem central idiossincrática, excessiva e delirante. O Inspector Truscott pode, de alguma forma, incluir-se numa linhagem de personagens absurdas desenvolvida através do professor de As Lições, ou do rei de UBUs?

RP Tão central como a enfermeira, certamente. Não valorizei o Truscott mais do que é devido (senão, se calhar, teria tentado convencer o João Reis a fazê-lo). Fizemos exactamente o exercício contrário: “Estes são os actores que eu tenho aqui, estamos a ter uma estratégia de companhia, precisamos de trabalhar coisas várias, temos de ir a Itália com o D. João16, se calhar temos que sair muito com O Saque, temos muitas récitas pela frente. E provavelmente teremos O Saque em Lisboa, no estrangeiro e aqui, em reposição em Março/Abril”. É o “elenco residente”… Os actores são essencialmente os mesmos. Fazer um exercício é também a obrigação de um Teatro Nacional: ser capaz de pegar nas pessoas que tem e obrigá-las a ensaiar em diferentes estilos. Curiosamente, ao contrário do que a sua pergunta implica, eu não acho o Truscott tão fascinante quanto isso. Acho-o uma personagem, uma figura, muito curiosa mas mecânica. É uma espécie de títere, de campeão de guignol. Nesse aspecto, aproxima-se um pouco de Dom Ubu e pode dizer-se que se aproxima um pouco do professor de As Lições (sendo que As Lições não são exactamente A Lição do Ionesco). Apostámos no conjunto destas pessoas. Fui muito cauteloso na distribuição, porque é óbvio que as pessoas não podem não se sentir bem a fazer estes papéis, senão isto não tem graça nenhuma. Um dos projectos que nós temos para o próximo ano, A Longa Jornada para a Noite17, será feito com um elenco dito “de Lisboa”: a Luísa Cruz, o Rui Mendes, o João Reis, entre outros. É um caso em que eu irei a Lisboa fazer um espectáculo (ou Lisboa “vem cá” para que eu faça um espectáculo “para Lisboa”), e aí sim, tenho de pensar qual é o melhor elenco para esse texto tão complexamente difícil. E penso a distribuição como se estivesse a fazê-la para um filme ou para uma grande produção. Aqui estamos a trabalhar em casa! Com os riscos todos que isso implica, estamos a trabalhar em casa! Temos tido várias estratégias diferentes (orçamento oblige). Em O Saque, optámos por perceber a que é que este estilo obriga no dizer, no ritmo, na valorização das palavras e o que é que isso implica para o elenco. É um trabalho de aprendizagem (como todo o trabalho teatral é), mas que, neste caso específico, significa um último contributo meu para a fixação de algumas normas de comportamento técnico-teatral para um ensemble de pessoas que têm, apesar de tudo, uma oportunidade alongada no tempo de trabalhar aqui connosco.

1 ACARTE/Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.
2 Thomas Bernhard (1931-1989) – Minetti (1976), peça encenada por Ricardo Pais (Teatro Nacional D. Maria II, 1990).
3 UBUs – Um contributo para a desdramatização da pátria – a partir de Alfred Jarry (1873-1907), espectáculo encenado por Ricardo Pais (TNSJ / TeCA, 2005).
4 As Lições – a partir de Eugène Ionesco (1909-1994) – A Lição (La Leçon – 1953), espectáculo encenado por Ricardo Pais (TNSJ, 1998).
5 O Mundo é um Manicómio (EUA – 1944), de Frank Capra.
6 O Barba Azul (EUA – 1947), de Charles Chaplin.
7 A Corda (EUA – 1948), de Alfred Hitchcock.
8 O Quinteto Era de Cordas (Grã-Bretanha – 1955), de Alexander Mackendrick.
9 Gangsters Falhados (Itália – 1958), de Mario Monicelli.
10 A Vítima do Medo (Grã-Bretanha – 1960), de Michael Powell.
11 Jacinto Lucas Pires (1974-) – Figurantes (2004), peça encenada por Ricardo Pais (PoNTI‘04/TNSJ, 2004).
12 Citado por John Lahr na introdução a Orton – Complete Plays (Londres: Methuen, 1993). Trad. Joana Frazão, in Artistas Unidos: Revista, n.º 12, Lisboa, Nov2004, p. 10.
13 Benjamin Britten (1913-1976) – The Turn of the Screw (1954), ópera encenada por Ricardo Pais (PoNTI‘01/Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura / TNSJ, 2001).
14 Up Against It, baseado no romance Head to Toe, de Joe Orton e Kenneth Halliwell. Projecto de filme, a ser interpretado pelos Beatles, não concretizado.
15 Jaime (Portugal – 1974), de António Reis.
16 Molière (1622-1673) – D. João (Dom Juan ou le Festin de Pierre – 1665), peça encenada por Ricardo Pais (TNSJ, 2006).
17 Eugene O’Neill (1888-1953) – Long Day’s Journey Into Night (1941).
 
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