Intervenção na Conferência Plenária LGBT do Fórum Social Europeu 2003: "A luta de lésbicas, gays trans e bis, reivindicar o direito às suas identidades: por uma outra globalização livre da ordem moral e do determinismo de género"
Filhos & Dildos: Subvertendo a Ordem Moral
Fabíola Neto Cardoso, Clube Safo, Portugal
Sinto-me muito feliz por estar aqui hoje, representando o ainda jovem e pequeno movimento LGBT português. É significativo que neste grande evento em que nos encontramos, o segundo Fórum Social Europeu, um dos grandes eixos de acção/discussão seja "Contra o neoliberalismo, o patriarcado, por uma Europa dos direitos, social e democrática". Isto significa que entendemos que, para um novo mundo, para outra globalização teremos de construir uma nova ordem moral e de género e que lésbicas, gays bis e trans têm uma importante palavra a dizer sobre o assunto.
Esta é a verdadeira razão pela qual a homofobia está tão profundamente enraizada na sociedade actual: um dos seus pilares é o heterossexismo e outro é o rígido e binário sistema de género. Destruir estes pilares permitir-nos-á abanar todo o sistema neoliberal e aproximarmo-nos de uma sociedade mais livre para tod@s e não só para as pessoas LGBT.
O heterossexismo é um mito, uma história sagrada, uma construção, um sistema político; uma mentira. É fruto de condições sociais, um erro histórico que condiciona a vida de milhões de seres humanos castrando a livre expressão das suas emoções e afectos. Mas este mito desempenha bem as funções sociais do mito: explica o mundo do desejo e do amor e, principalmente, ele garante a estabilidade das coisas__ o heterossexismo justifica uma ordem moral intocável__ intocável porque não é questionada, não é avaliada; é aceite como um mito, uma óbvia natural e universal verdade. E esta ordem moral heterossexista sustem o edifício económico e político que questionamos.
Mas a realidade é plural e nós, LGBT e outr@s rebeldes sexuais, existimos e estamos a subverter seriamente esta ordem moral institucionalizada pelos nossos modos de vida, pelo nosso discurso e pelas nossas práticas sexuais. Poderia falar de dezenas de situações diferentes respeitantes às identidades LGBT, às diferenças entre os LGBT ou às lutas LGBT, mas falarei apenas de duas coisas: dildos e filhos e de como estes dois assuntos subvertem a ordem moral heteropatriarcal vigente.
Um dildo é um brinquedo sexual, um sexo de plástico (ou apenas uma cenoura!), um objecto feito para o prazer sexual que pode ser usado por uma mulher ou um homem, num cinto ou sem ele, que pode parecer-se a um pénis, a um pequeno verme ou a qualquer outra coisa.
O que é uma mulher com um dildo? Um homem? Meio homem? Uma mulher a tentar fazer sexo como um homem? E se o dildo não se parecer com um pénis? Se for azul e com forma de golfinho? Ainda é uma imitação do pénis? E se o dildo for colocado no braço e não na região genital? Que ocorre quando se usam vários dildos diferentes?
Quando duas lésbicas partilham um dildo entre si a situação é diferente de quando um casal heterossexual o faz? Elas ainda são verdadeiras lésbicas? E se só uma das duas mulheres usar o dildo? Ela está a ser heterossexual? Ela é transexual ou transgender? E a outra mulher, é mais mulher? Sexo com um dildo ainda é sexo lésbico? E com dois?
E se uma mulher usar o dildo num homem? Ela está a ser gay? Ele está a ser gay? E se um homem gay usar um dildo, ele é um duplo-homem? E se ele for hetero? Quantos pénis tem um homem com um dildo? E uma mulher que usa dois dildos? Qual é o sexo de um corpo com um dildo?
Poderia usar as minhas próprias palavras mas a escritora lésbica Beatriz Preciado já o fez, no seu livro Manifesto Contra-Sexual (1). "O dildo converte o foder num acto paradoxal ao não ser passível a sua assinação à tradicional oposição entre homem/activo e mulher/passivo. Confrontado com este pequeno objecto todo o sistema heterossexual dos papéis de género perde o sentido. Mais, as ideias e as emoções sobre prazer sexual e orgasmo, tanto hetero como homossexuais, tonam-se ultrapassadas se considerarmos o dildo. É uma verdadeira ruptura epistemológica" (2).
O tema da homoparentalidade é outros daqueles que fazem tremer a ordem moral heteropatriarcal instituída. Nós; lésbicas, gays, bis e trans; não temos filhos. Nós não participamos no jogo da complementaridade-reprodutiva homem/mulher pelo que não é suposto que nos reproduzamos. Ou se temos crianças, elas serão herdadas de relações prévias "normais" pelo que as crianças pertencem a uma família "quase-normal".
Mas a realidade está a mudar e rapidamente. As pessoas LGBT estão a lutar, não só pelo direito de adoptar crianças, mas também pela possibilidade de terem as suas próprias crianças biológicas e já o estão a fazer neste preciso momento por toda a Europa.
Quando um casal lésbico decide ter uma criança as questões são óbvias: Quem será o pai? Não há nenhum pai. Mas não achas que a criança tem direito a um pai? Como é que o fizeram? Que dirão à criança? Há aqui um grande erro: todas as questões estão erradas pois partem de um ponto de vista heterossexista, patriarcal e sexista.
Não há nenhum pai, essa criança crescerá e viverá sem um pai. E é tudo. Ele ou ela terá duas mães e nenhum pai. E depois? A verdade é que não haverá uma figura parental no sentido tradicional da expressão. Quem tem a legitimidade para dizer que uma criança necessita de um pai e uma mãe, de um homem e uma mulher para crescer saudavelmente? Se estamos a tentar ultrapassar este estúpido e arcaico sistema de rígidos papéis de género como podemos defender que ele é necessário para as nossas crianças?
Aceitamos que não temos de ser muito sensíveis, calmas e charmosas só porque nascemos mulheres... mas os nossos pequenos precisam de aprender o que é esperado de uma mulher e de um homem tendo uma mãe e um pai... Defendemos a possibilidade de cada pessoa ser mais do que o papel de género que lhe é atribuído socialmente... mas as crianças precisam de um pai para aprender o que é ser homem... Não percebo! (3)
As crianças precisam de quem as ame, de quem olhe por elas, de quem as ajude a ser tudo aquilo que possam e queiram ser. Não há nada especialmente diferente em ter duas mulheres, dois homens ou uma mulher e um homem a cuidar de uma criança. As diferenças existem mas nenhum dos casos é melhor ou pior. Crer que sim é colocar-se numa perspectiva sexista e existencialista.
Espero que estas duas breves abordagens tenham tornado claro que, se realmente queremos questionar as relações entre as pessoas, temos de ser capazes de questionar e re-inventar o sexo, o amor, o cuidar, as relações familiares e o prazer. Só através deste processo construiremos a nova ordem moral (ou desordem!) necessária para uma nova estrutura social, política e económica.
Só assim outro mundo será possível, para tod@s!
(1)Manifiesto contra-sexual, Beatriz Preciado, Editorial Opera Prima
(2)Tradução muito livre. Mas fica o desafio, a obra merecia ser traduzida para português.
(3)Tudo o que acabei de dizer aplica-se de igual modo a gays, bis e trans.