No comunicado do CSM citado, que, com data de 21 de Junho, explicitava os motivos pelos quais o julgamento dos menores implicados no espancamento e morte da transexual sem-abrigo de nacionalidade brasileira Gisberta Salce Júnior iria decorrer à porta fechada ("preservação da identidade dos menores" e do seu "equilíbrio psíquico e psicológico aquando dos depoimentos"), lia-se ainda: "O Tribunal - sem prejuízo da necessária preservação da identidade dos menores - fará chegar aos profissionais da Comunicação Social informação sobre a forma como decorreu cada sessão de julgamento, no final de cada uma."
Mas a informação que o tribunal entendeu, através do secretário de justiça Lino Castelo Branco, fazer chegar aos jornalistas limitou-se ao débito do número de testemunhas ouvidas em cada dia e ao anúncio do número das que seriam ouvidas no dia seguinte, à informação sobre a presença autorizada de um observador enviado pelo consulado brasileiro e, em fase de alegações finais, sobre a suavização da posição do Ministério Público (MP), que decidiu abandonar a imputação de tentativa de homicídio e optar antes por "ofensas qualificadas à integridade física na forma consumada".
Falta de transparência
A título de exemplo, no comunicado do segundo dia do julgamento, 4 de Julho, lia-se: "No dia de hoje, procedeu-se à audição de mais dois menores, os quais de forma voluntária, prestaram declarações sobre os factos; No dia de amanhã, pelas 9.30 horas, o julgamento prosseguirá com a audição de mais quatro menores, dois no período da manhã e os outros dois no período da tarde." Seria esta absoluta ausência de informação que o CSM preconizava quando referia "o respeito pelas funções da Comunicação Social num Estado Democrático?"
O juiz Edgar Lopes, porta voz do CSM, reconhece que a fórmula "não contribui para a ideia de transparência da justiça e para a sua imagem", mesmo se releva que "não se pode inverter o valor: o interesse fundamental no processo não é a opinião pública, é que se faça prova e esta seja avaliada, que se faça justiça. Mas claro que é importante que a opinião pública acompanhe e compreenda".
Também Carlos Pinto de Abreu, presidente da comissão de direitos humanos da Ordem dos Advogados, considera no mínimo indesejável a situação criada. "Devia ser dada alguma informação objectiva, não individualizável, que permitisse perceber o que se estava a passar no julgamento. Isso é fundamental num Estado de direito porque as pessoas têm a obrigação cívica de seguir os julgamentos."
Confessando-se preocupado com o caso - preocupação de que deu nota pública num comunicado da comissão da Ordem a que preside - Pinto de Abreu considera que deve ser estudado e reflectido. "Espero que seja possível que a seguir jornalistas e psicólogos possam estudar o manancial de informação que existe no processo. É preciso tentar perceber o que se passou." Ou, como escreveu no comunicado, perceber o que "pode significar um conjunto de agressões e uma morte inflingidas por razões de aproveitamento da fragilidade e da miséria, de ódio homofóbico ou de repúdio a um transexual".
Opacidade vs branqueamento
A decisão sobre a ausência de publicidade do julgamento foi tomada (e só podia sê-lo) pelo juiz do processo e não pelo CSM, frisa Edgar Lopes. Mas admite que se poderia ter encontrado uma forma de conciliar os dois valores. "A solução ideal para uma coisa destas seria um juiz estar ali presente para depois transmitir aos jornalistas o que entendesse relevante." Hipótese que chegou a ser colocada, a pedido dos media, no caso Casa Pia, para as audiências "à porta fechada" em que as alegadas vítimas iriam depor, mas não foi aceite pelo CSM, alegando "falta de meios".
Outras possibilidades - a nomeação de um funcionário do tribunal para efectuar uma ligação efectiva com os jornalistas, a presença de um jornalista que, em regime de pool , seguisse as audiências, ou a utilização de um sistema de som que, aliado à não identificação dos nomes dos menores durante a audiência, permitisse aos media ouvir o que se passava na sala - não foram sequer apreciadas. Edgar Lopes garante que nenhum órgão de comunicação social o contactou com qualquer proposta do género.
Certo é que o sistema judicial português - que, como é bom lembrar, existe, de acordo com a Constituição, para administrar a justiça "em nome do povo" e portanto não às escondidas do povo - teria tudo a ganhar em contrariar a imagem de opacidade e autismo de que goza junto da opinião pública, e casos como o deste julgamento não contribuem em nada para isso, como Edgar Lopes admite. Ainexistência de informação criou aliás, em parte da opinião pública e publicada, a suspeita de um branqueamento.
Uma suspeita que o advogado Ricardo Sá Fernandes ecoa: "Faz imensa impressão essa ideia de que não terá havido homicídio. Se uns miúdos com 13 e 14 anos depois de lhe terem batido atiram uma pessoa para dentro do poço e não querem matar, não sei o que é querer matar. Claro que se trata de um julgamento de menores e se trata de educar, não de castigar. Mas é um péssimo exemplo que se dá, branquear este comportamento."