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Sexta-feira, 13 Outubro 2017 06:27

OPINIÃO
Prós e Contras - mais contras que prós



PortugalGay.pt

Só tive conhecimento no Domingo que no programa Prós e Contras, emitido às segundas na RTP1, ia ser debatida a alteração de nome e sexo aos 16 anos.

OPINIÃO: Prós e Contras - mais contras que prós

Com efeito no Domingo fui contactada por amigos a informarem-me e a questionarem se eu iria estar presente. Como não sabia de nada, fui “cuscar” à página facebookiana se lá estava alguma informação. E com efeito lá estava um videozinho a publicitar.

Fui também informada que iriam estar presentes como oradores Catarina Marcelino (Secretária de Estado da Igualdade) e Sandra Cunha (BE), que se soubesse na altura.

Bem, tive de ponderar: pelos vistos nenhuma associação/grupo independente trans tinha sido convidado para falar sobre um assunto que lhes dizia directamente respeito (e como se veio a verificar, nenhum grupo trans foi convidado, independente ou não). Também duvidei (acertadamente) que nenhuma pessoa trans (entre os 16 e os 18 anos) iria ser ouvida. Também imaginei logo (acertadamente) que o Abel iria ser convidado, por ser psicólogo e sexólogo (visto que o Dr. Décio se encontra envolto em polémica), e por ser do CDS. Imaginei (também acertadamente, só não acerto é no euromilhões, pelos vistos) que as pessoas trans que comparecessem iriam ter pouca ou nenhuma possibilidade de serem ouvidas. E depois de conferenciar com a Lara, decidimos que não iríamos dar o aval ao programa com a nossa presença nestes termos.

Em vez disso considerámos muito mais produtivo tentar-se mobilizar a população trans e apoiantes para que votassem na enquete que o programa costuma ter e que vai apresentando. Seria muito bom termos uma boa prestação de apoio nessa enquete para contrabalançar o previsível apagamento das pessoas trans no programa. Como se viu, não resultou. Mas tentou-se.

Efectivamente a comunidade trans que compareceu no programa foi tratada como os “freaks” em exposição. Compreenda-se, costumo ver o programa quando não está a dar nada de interesse ou novo em outros canais, portanto já tinha visto alguns. E nunca em nenhum programa vi filmarem tanto o público, entenda-se, pessoas trans presentes. Portanto as pessoas trans que lá foram serviram dois propósitos: dar a aval ao programa, apesar de terem sido ignoradas e impedidas de se pronunciarem sobre assuntos que as afectam directamente, e servirem de exposição.

A única pessoa trans que falou, Daniela Bento, fê-lo, segundo sei, porque uma única pessoa trans podia falar durante o programa. Não sei é se falou porque mais ninguém quis, por decisão conjunta dos presentes, ou por se encontrar à frente do GRIT-ILGA Portugal. Nem se só podia falar uma única vez durante o programa, como aconteceu, provavelmente sim, foi por imposição do programa.

Evidentemente que quem lá foi não vai concordar com este ponto de vista, devem achar que foram visibilizar a comunidade trans, que é preciso e tal. Concordo que é preciso, mas também é preciso que deixemos de mendigar espaços e vozes que deviam ser nossos à partida, e assim há que escolher onde e quando devemos ser visíveis. E num programa que transformou algo que são direitos humanos em politiquices esquerdistas e ignorou, deliberadamente a meu ver, as vozes trans ao não convidar nenhuma associação/grupo trans independente, tenho pena mas não.

Penso estar-se na altura de haver um debate inter-associações/grupos sobre que tipo de representação queremos no futuro. O tempo do “bem ou mal, o que interessa é que falem de mim” já lá vai.

O programa em si começou mal, como se esperava. Fátima Campos Ferreira iniciou logo as hostilidades com o mito dos jovens poderem processar os pais. Rebatida a afirmação, esperemos que agora os media deixem de aldrabar as pessoas com frases bombásticas como que “os pais podem ser processados por não autorizarem a mudança aos 16”. Qualquer pai pode ser responsabilizado quando entrar em conflito com os direitos dos menores, tal como já acontece. Agora também podem sê-lo se se confirmar que estão em conflito com o desenvolvimento saudável do menor ao negarem essa alteração. Só isso. Quantos casos há de maus tratos a menores? Nada de novo aqui, tal como foi explicado.

Bem, durante o programa todo não houve uma alminha que tivesse a audácia de informar o Sr. Abel e a vice presidente do PSD, Sofia Galvão, que aos 16 anos já as pessoas têm bem definida a sua identidade de género. Claro que há excepções, como em TUDO na vida, excepções há e haverá sempre, não há volta a dar. Mas por causa de uma probabilidade de existirem excepções, não se vai negar o direito à autodeterminação de género das pessoas.

Há que ver bem as coisas: em Portugal aos 14 anos já se é “maior” para se ter relações sexuais com outros jovens até aos 17 anos. Se, por exemplo, for com uma pessoa de 18 já é considerado abuso sexual. Absurdo? Sim, entre os 17 e os 18 não se vê muita diferença. Mas continuando, aos 16 já se pode conduzir motociclos desde que tenham menos de 125 cm3 de cilindrada. A partir dos 18, pode-se tudo.

As idades de consentimento sexual variam consoante o país. No Egito ou nos EUA a idade de consentimento é aos 18 anos, no Reino Unido, no Canadá e na Namíbia, por exemplo, é aos 16 anos, na Suécia aos 15, na Coreia 13 e no México 12.

Outros exemplos: no Brasil, por exemplo, pode-se votar a partir dos 16. Nos EUA, é possível conduzir a partir dos 16 anos, mas votar só depois dos 18 e ir à discoteca apenas aos 21, no Irão , Arábia Saudita ou Iémen a maioridade é instituída aos 15 anos, o Líbano, Malásia, Singapura ou os Emiratos Árabes Unidos fixam a maioridade nos 21.

Portanto nada disto é consensual, nem sequer científico, é simplesmente fruto da vontade política de cada país. Convenhamos, se fosse científico seria de presumir a não existência de tanta discrepância neste assunto. Portanto o Sr Abel e a Srª Sofia Galvão nada mais fizeram que transmitir as usuais vozes mais conservadoras sempre que se fala de qualquer alteração aos direitos humanos das pessoas.

Fiquei muito sensibilizada com a preocupação demonstrada por estes dois convidados, ao referirem insistentemente, já para os finais do programa, que as pessoas de género não binário ficavam de fora do âmbito desta lei. Pena foi que nem Marcelino nem Sandra aceitassem esta crítica, convidando o PSD e o CDS a, nas reuniões de especialidade que vão haver, proporem uma alteração à lei para acabar com o binarismo de género e que o estado assumisse o reconhecimento legal destas identidades. Dada a preocupação demonstrada por estes representantes destes partidos, seria o passo lógico a dar.

Catarina Marcelino, nas suas intervenções, afirmou que a nova lei retira a saúde do processo, coisa com que eu não concordo. Quer dizer, temos direito à autodeterminação do nosso género, mas não temos direito a alterar o nosso corpo para que fique mais perto da nossa identidade? A comunidade trans quer uma autodeterminação plena, não metades. Queremos (e temos esse direito) a poder fazer tratamentos hormonais e cirurgias sem termos de passar pelo crivo de psiquiatras e psicólogos que nada mais fazem do que verem se estamos dentro dos parâmetros do que eles consideram ser homem ou mulher. E como esses parâmetros variam de pessoa para pessoa, vão continuar as injustiças. Se um psi considerar que reúno as condições para fazer esses tratamentos, outro ao lado pode não o considerar. Assim o processo passa a ser uma lotaria, para andarmos a pular de médico em médico até encontrarmos um que nos aceite. Mal. mal, mal, mal.

A Daniela falou sobre as consultas que teve, o teatro que teve de fazer para que o processo não parasse. Podia ter ido muito mais longe. Podia ter acrescentado que os médicos julgam baseados nos seus próprios preconceitos e não em conceitos científicos, que não há maneira de se avaliar a identidade de género de cada um, que aos 16 já cada pessoa sabe bem qual a sua identidade de género. Não o fez, expôs o ridículo das avaliações psiquiátricas e psicológicas a que foi submetida, mas ficou-se por aí.

Margarida Faria, da AMPLOS, mencionou a lei de identidade de género recentemente aprovada em Malta e que foi impulsionada por uma jovem (Willa) e que permite a qualquer pessoa alterar legalmente o seu género, bastando preencher uma declaração num cartório, proíbe a realização de cirurgias sem o consentimento explícito dos pais em crianças intersexo e permite que a definição do género da criança passe para um momento que se considere mais adequado. Muito similar ao que o projecto do Governo propõe.

O Sr Abel demonstrou-se muito preocupado com a possibilidade de passarem a existir homens grávidos em Portugal e mulheres com pénis nos balneários dos ginásios. Ou seja, mulheres com pénis não, não importa a sua identidade de género, para o Sr Abel mulheres não têm pénis. E tem uma certa razão, a maioria das mulheres não têm pénis. Mas existem mulheres com pénis, e como foi muito bem dito, a sociedade tem de evoluir para aceitar isso.

Por outro lado, não querem permitir tratamentos e cirurgias por livre vontade da pessoa, mas para este psicólogo já faz sentido forçar tratamentos e cirurgias para que uma pessoa veja reconhecida a sua identidade. Obviamente que se trata aqui de uma espécie de policiamento de género para não existirem homens grávidos e mulheres com pénis (ou homens com vagina, mas esses já não parecem ser tão preocupantes pois raramente ou nunca são mencionados neste contexto).

Homens grávidos, se bem que possam vir a ser novidade em Portugal, é algo já existente lá fora. E nenhum mal veio ao mundo com isso. Pode criar problemas legislativos? Evolua-se, altere-se a legislação existente para acomodar esses casos. Qual o problema?

Outra das preocupações do Sr Abel, o facto de qualquer pessoa poder alterar estes dados oficialmente. Não se prevê, a não ser naquelas mentes mais perversas, que esta legislação provoque uma corrida de pessoas cis às conservatórias para alterarem a documentação. E o facto de qualquer pessoa poder usufruir desta lei é similar a muitas outras coisas que toda a gente pode usufruir. Por exemplo, qualquer pessoa pode casar com outra, o facto de poder depois matar a outra à pancada não tem sido problema significativo para se poder casar sem uma autorização psiquiátrica. Já aconteceu cá. Também o facto de, por qualquer razão, uma pessoa com carta que atire a viatura contra outras pessoas também não parece ser razão para que toda a gente possa tirar a carta. Já aconteceu lá fora. O que NUNCA aconteceu foi que num país onde este tipo de alteração tenha sido aberto a toda a população desse origem a que uma pessoa cis alterasse a sua documentação. Factos, não histórias destinadas a meter medo nos corações de quem ouve.

Outra das histórias destinadas a fins semelhantes, a do homem casado, lá pelos 60 ou 70, já não me recordo bem, que queria mudar de sexo. Devido à idade, salvo erro, o Sr, Abel desconfiou e mandou-o para neurologia, onde lhe descobriram um tumor e depois segundo parece a “ideia passou-lhe”. Não ficou explicado se a ideia passou por ser um tumor maligno terminal, ou se foi tratado, mas isso não interessa para a ideia. Como foi um caso médico, não pode ser comprovado, algo muito conveniente para este tipo de argumentação

Faz-me lembrar a história de um trans que depois de fazer a transição arrependeu-se, que nos diziam para provar a necessidade de nos submetermos a avaliação psiquiátrica. Salvo erro essa história durou uns 20 ou 30 anos. Obviamente nunca pôde ser confirmada, confidencialidade, entenda-se. Pela história deduz-se que se tratava sempre do mesmo caso. Claro que estava mal contada. Entenda-se, ainda hoje, qualquer tratamento e/ou cirurgia que se pretenda fazer requer relatório. Logo, essa pessoa, para ter feito processo passou pelo crivo destes “especialistas”. E a ser verdade, os especialistas não souberam determinar quem era, daí ter-se arrependido. Logo, os anos de consultas não serviram para nada, pois fez a transição.

Carla Moleiro, psicóloga do ISCTE (onde foi feito o programa, provavelmente por ter tão pouca audiência, como se podia ver nas imagens transmitidas de filas e filas de cadeiras vazias como pano de fundo) posicionou-se contra a visão do Sr Abel e a favor das propostas de lei.

Como resultado final, viu-se que o CDS e o PSD, apesar de tudo, fizeram o trabalho de casa, o Governo também, embora pudesse ser mais assertivo às vezes, e a representante do BE, sinceramente na minha opinião, devia-se dedicar a outros assuntos que serão talvez mais do seu interesse. Passou o debate todo a repetir sempre a mesma coisa, fosse o que fosse que lhe perguntassem. Ou foi mal preparada, sem fazer os trabalhos de casa, ou está a tratar destes casos em que não tem empatia ou interesse nenhum, ou preparou-se e pura e simplesmente não tem estaleca para estes debates.

Uma menção também a Ricardo Branco, professor assistente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que me pareceu quem melhor fez a lição de casa, e que inclusivé apresentou duas propostas para melhora das existentes: a obrigatoriedade de entrega, junto com o pedido no Registo Civil, de uma fundamentação por escrito sobre os motivos que levam a pessoa a querer mudar de sexo nos documentos e que as mudanças de sexo requeridas por menores de 18 anos sejam também “acompanhadas de um relatório médico, não a diagnosticar perturbação de género, mas a atestar que a criança entende” o que está em causa, tendo-se claramente posicionado a favor das propostas.

Como nota final, que já vai longo o texto, deixo aqui os resultados de uma enquete que descobri na net, feita no FB e no Twitter, para se pensar: à pergunta: “Quem teve o discurso mais esclarecedor hoje no PEC?” no FB os resultados foram os seguintes: Abel Matos Santos 50%; Catarina Marcelino 25%; Sandra Cunha 25%; Sofia Galvão 0%. No Twitter a mesma enquete obteve os seguintes resultados: Catarina Marcelino 43%; Abel Matos Santos 29%; Sandra Cunha 14%; Sofia Galvão 14%.

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