13 Março 2004
Carta aberta a Miguel Sousa Tavares
Ridículas são estas afirmações
Por FABÍOLA NETO CARDOSO
Para Miguel Sousa Tavares (Opinião in Público, 12 Março 2004) é óbvio que "um casal homossexual não oferece garantias para criar e educar equilibradamente uma criança". Invoca o direito a uma "infância saudável" e ironiza com a vontade dos homossexuais de "brincarem aos pais e mães".
Qual a argumentação máxima eruditamente utilizada? Olhemos "para a natureza", para elefantes e focas. "Já viram elefantes 'gays' ou focas lésbicas a criarem filhos em comum?" Não sou zoóloga nem vou citar exemplos dos muitos especialistas que investigam a homossexualidade nos animais mas não consigo de recordar noções básicas sobre a vida destes mamíferos.
Os elefantes vivem em bandos, cada bando é formado por várias fêmeas que se inter-ajudam e pelas suas crias. Cada um destes grupos é liderado por uma matriarca. Os machos assim que iniciam a maturidade sexual deixam o grupo e passam a vaguear em pequenos grupos de jovens. Machos e fêmeas apenas se juntam durante os períodos de procriação.
As focas (Família Phocidae) apresentam grandes diferenças comportamentais relativamente à reprodução, verificado-se uma grande variabilidade entre as diversas espécies, observando-se unidades familiares isoladas (de machos, fêmeas e crias) como na foca anelada, até aos grupos poligâmicos e extremamente dimórficos dos elefantes marinhos.
Muito heterossexuais e de família tradicional os dois exemplos escolhidos.
Esgota-se-me a paciência para este tipo de argumentação. A natureza diz-nos que o modelo pai/mãe/crias não é único nem o mais frequente. Muitos outros são igualmente naturais e funcionais. Gays e lésbicas sempre tiveram filhos, sempre os educaram da melhor maneira que puderam, o mais equilibradamente possível. Como qualquer outra mãe ou pai. Com pelo menos tanta (se não mais) preocupação pelos "direitos legítimos" das crianças.
"Brincar aos pais e mães" afirma, referindo-se a gays e lésbicas. Brincar brincam alguns heterossexuais, quando se esquecem do planeamento familiar, quando têm filhos só porque é isso que se espera deles, sem se questionarem se têm condições psicológicas, emocionais, afectivas, práticas para tal. Brincam os Governos quando continuam sem implantar uma verdadeira Educação Sexual nas escolas. Brincam os especialistas que debitam afirmações avulso sem fundamentação científica credível.
Esgota-se-me a paciência para este tipo de argumentação. Gays e lésbicas não brincam com este assunto. Sabem muitas vezes na pele o que é ser discriminado, invizibilizado, negado, ofendido, ridicularizado. Não pensam duas vezes, pensam duzentas antes de decidir ter/criar/apoiar uma criança. E se o fazem é porque consideram ter amor, força, condições, alegria e capacidade suficiente para tal. Não é isto natural? Que tipo de "garantias" extra oferecem os heterossexuais? Nenhumas! A única diferença é que o sistema social cultural e político heterosexista vigente insiste em negar o que se torna cada vez mais evidente: existem muitas maneiras de amar e todas são naturais e legítimas.
E por falar em "direitos legítimos de terceiros inocentes" lamento saber que partilha da opinião de Luís Vilas Boas, de que um desse direitos é passar a infância numa instituição! Eu obviamente não partilho dessa opinião e lembro-me da Convenção sobre os Direitos das Crianças da UNICEF, que Portugal ratificou em 1990. Ela reconhece que a criança "deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão" de modo a desenvolver um "espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade". Espírito que bem falta neste país.
Não percebo, sinceramente não percebo. Conhece assim tantos casais de homossexuais com filhos que sejam uma desgraça de pais? Leu assim tantos estudos sobre o tema que esteja completamente seguro do que afirma?? Que o leva a pensar assim? Porque é tão claro para si, e para muitos outros, aquilo que para mim é tão revoltante? Aquilo que o meu conhecimento do mundo diverso em que vivemos nega diariamente.
Não são só opiniões, teorias, visões do mundo. São pessoas, sentimentos, projectos de vida. Porque é que é ridículo? Não percebo!
Pode explicar-me?
Artigo de opinião que originou esta resposta:
O Ridículo Causa Danos
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Sexta-feira, 12 de Março de 2004
1 - Aqui há uns anos, na televisão, havia um programa de conversas em que o jornalista Luís Osório entretinha um debate com o dr. Daniel Sampaio e uma figura retorcida, que se sentava sobre as pernas, fazia uns vagos gestos com as mãos e, volta e meia, soltava umas frases desgarradas, tipo-pós-modernas, restaurante dos Tibetanos ou Frágil. Entre os meus amigos, baptizámo-la de "A Vírgula", devido aos seus contorcionismos, e divertiamo-nos a imitá-la no dito programa. Mas, ao consultar a lista de deputados saídos das últimas legislativas, constatei com espanto que "A Vírgula" havia sido eleita suplente na lista do Bloco de Esquerda e, como tal, estava destinada - devido ao rotativismo igualitarista do Bloco - a aparecer ocasionalmente como deputada da nação, isto é, minha deputada. Cheguei a vê-la, aliás, numa intervenção parlamentar, onde já não apareceu sentada sobre as pernas e a pose era claramente de alguém que tinha passado a levar-se francamente a sério - embora com piores resultados.
Esta semana, nestas libérrimas páginas do PÚBLICO, "A Vírgula" - de sua graça, Ana Drago - apareceu-me a dissertar sobre o aborto, ao melhor estilo do "direito à minha barriga". Entre o panfletário e o patético, desabafava ela que "o Dia Internacional da Mulher é mais um dia em que procuro novos caminhos para saber o que faço da minha revolta com a sistemática condenação do direito ao meu corpo".
Eu - votante, discreto militante e fervoroso crente da despenalização do aborto e do direito ao aborto em hospitais públicos, com a assistência médica e os meios do Estado - confesso, todavia, que vomito este discurso. Na questão do aborto, o que menos me preocupa é o direito da deputada Ana Drago ao seu corpo: que faça com ele o que quiser. O que me preocupa, única e exclusivamente, é o direito de uma criança que vai nascer a ter um pai e uma mãe, condições de vida minimamente aceitáveis e alguém que se preocupe com ela, que a ame, que lhe ensine o milagre de estar vivo e a responsabilidade de sobreviver. Começa, porque o aborto não é um direito: é uma tragédia, uma tragédia que se assume, em desespero ou em consciência, quando o que se apresenta como alternativa é uma tragédia ainda maior. Segue-se que, se fosse direito de alguém, não se percebe por que haveria de ser apenas da mãe e não também do pai - e se o pai, contra a vontade da mãe, quiser ter o filho e se comprometer a criá-lo e educá-lo sozinho? Ah, pois, o útero, a barriga, o corpo: o corpo é da mulher, é ela que manda nele. E quem é que manda verdadeiramente no corpo da mulher? Serão os seus progenitores que a criaram, em vez de terem decidido abortar dela? Será ela própria, os produtos de beleza, os cirurgiões plásticos? Não, quem manda é a natureza. É a natureza que decide se uma mulher é fértil ou infértil, se adoece ou se tem saúde, se engravida ou se aborta espontaneamente. Por isso, eu vejo a questão do aborto, não como um problema ideológico ou religioso, mas como parte do equilíbrio profundamente instável das regras desse imenso jogo que é a vida - a vida, segunda as únicas verdades invencíveis, que são as da natureza. Na natureza, quando uma fêmea mata à nascença as crias mais fracas, não o faz porque as não queira ou não ame, mas apenas porque não tem condições para criar todos os filhos e opta por defender os que podem sobreviver. Na natureza humana, as condições são mais amplas, mais dolorosas e mais traumatizantes que a simples capacidade de sobrevivência física dos filhos. Entram em jogo outras e mais angustiantes coisas, como as condições psicológicas, financeiras, conjugais, amorosas. A decisão é de cada um, conforme a sua vida, a sua força, a sua convicção íntima. E se defendo a liberalização do aborto é porque entendo que o que é íntimo é impartilhável e escapa a Deus e a César. Não é, seguramente, porque a Igreja Católica e alguns fanáticos que julgam saber em exclusivo o que é a família são contra, que eu sou a favor. Mas também não sou a favor, certamente, por causa do direito à barriga da deputada Ana Drago.
2 - Por idênticos e primários raciocínios, caiu em cima de Luís Vilas Boas um coro de politicamente correctos, só porque ele se atreveu a dizer uma coisa óbvia: que um casal homossexual não oferece garantias para criar e educar equilibradamente uma criança. Uma vez mais, é o direito das próprias crianças a uma infância saudável que passa para segundo plano, cedendo ao direito dos homossexuais, mulheres ou homens, de brincarem aos pais e mães. Uma vez mais, a minha resposta é: olhem para a natureza. Já viram elefantes "gays" ou focas lésbicas a criarem filhos em comum? Peçam o que é legitimo pedir - igualdade de direitos conjugais e sucessórios, por exemplo -, mas não peçam o que não é natural pedir e ofende os direitos legítimos de terceiros inocentes.
3 - E no Dia Internacional da Mulher, o Presidente Jorge Sampaio foi almoçar com mulheres que vestem fardas - da polícia ou das Forças Armadas. Com aquele seu ar de quem carrega às costas a missão de justiçar o mundo inteiro, avançou para um grupo de mulheres-polícias e quis saber se tinham muitas dificuldades de relacionamento com os colegas homens. Elas entreolharam-se, surpreendidas com a pergunta: "Nenhumas", responderam. Lá morreu mais um Dia Internacional da Mulher.
4 - Nós já o sabíamos, mas, confessado pelo próprio, a coisa torna-se quase indecente: no seu segundo volume de memórias políticas, Cavaco Silva diz que considerava Santana Lopes um bom secretário de Estado da Cultura, pois tinha conseguido "atrair para a área social-democrata" bastantes intelectuais e artistas. Salvo melhor definição, não vejo que outro nome dar a isto que não o de corrupção política, e fico siderado por constatar que um primeiro-ministro considera ser essa a tarefa fundamental de um secretário de Estado da Cultura.
Dentro da mesma linha de pensamento, Cavaco afirma igualmente que, se fosse hoje, teria frequentado um curso de "sedução de jornalistas". Ele pensa também que os jornalistas, todos os jornalistas, são seduzíveis e arregimentáveis: basta saber como o fazer. É assim que ele vê a função da imprensa.
Enfim, culminando as suas surpreendentes confissões, o homem que também quer ser Presidente da República lastima ter cometido o erro de dizer que não gastava mais de dez minutos por dia a ler jornais. O erro - entenda-se bem - não era o de não ler jornais, mas o de confessar que os não lia. Como pode alguém governar o que quer que seja, sobretudo um país, se não sabe e não lhe interessa saber o que se passa no país e no mundo, o que pensam os outros, o que fazem, o que sentem, o que os indigna, o que esperam? O ódio visceral que Cavaco sempre revelou pela imprensa e, através dela, pelas opiniões e preocupações alheias foi uma imagem de marca de toda a sua governação e a razão final para o cansaço e o descrédito que acabou por causar no país. Pelos vistos, continua igual a si mesmo. "Fechado em seu próprio cativeiro", como alguém escreveu sobre outro alguém.
5 - Depois de doze anos na justiça, vai prescrever o processo sobre a falência fraudulenta da Caixa Económica Açoriana, através da qual meia dúzia de senhores roubaram as economias de uma vida a centenas ou milhares de antigos emigrantes açorianos. Mas, como somos um país onde a autoridade e a justiça ainda são para levar a sério, o genial ministro da Administração Interna que sofremos prepara-se para agravar indiscriminadamente as multas de trânsito, fingindo que está a fazer prevenção rodoviária, a polícia persegue os cantores de rua do Chiado (que, como se sabe, são um desacato público no mundo inteiro) e o Governo estuda legislação para pôr na ordem os pescadores amadores, que, com as suas canas de pesca na marginal de Lisboa ou do Porto, ou apanhando berbigões na ria Formosa, são um factor de depredação dos recursos pesqueiros do país.
6 - A lista do PS para as europeias oscila entre a anedota, a falta de pudor e o caso grave. Anedota é a escolha de nomes que não têm, no país, o mínimo de credibilidade e reconhecimento. Falta de pudor é o critério de contemplar com as apetecidas sinecuras europeias os jovens carreiristas, ditos "fracturantes" e "incómodos": põe-se-los a tratar da vidinha, como dizia o O'Neil, e está o caso resolvido. Grave é pegar em nomes como António Costa ou Ana Gomes e, em vez de os empenhar em Lisboa no combate pelo derrube da actual maioria, despachá-los para Bruxelas, a bom recato. Por que há-de alguém votar numa lista que consegue a proeza de simultaneamente afastar os bons e premiar o falhanço e o carreirismo?
Outros comentários recebidos no PortugalGay.PT sobre o artigo de opinião de Miguel Sousa Tavares:
Anónimo
16 Março 2004 1:10
ver também:
Declarações de Villas Boas e diversas reacções