Jornal Público
Sábado, 27 de Maio de 2006
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Falando apenas sobre os conceitos de análise social subjacentes a esta lei da reprodução medicamente assistida,
é transparente que, em relação à reprodução medicamente assistida, o PS cede ao conservadorismo
ultramontano,uma cedência que só não é ridícula porque é trágica
Artigo de Opinião por São José Almeida
Enquanto partido maioritário, o PS
aprovou no Parlamento uma lei de
reprodução medicamente assistida
(RMA) que é o espelho de como este
partido tem medo de afirmar uma posição que
tenha a ver com o que é a sociedade hoje e como
cede com uma facilidade imensa ao conservadorismo
mais bacoco, inspirado por um fundamentalismo
católico, que insiste em estereótipos
caricaturais que em nada correspondem à actualidade
da sociedade portuguesa ou europeia e
à sua história.
Numa daquelas trapalhadas que nascem do
facto de haver deputados que se acham muitos
espertos, o grupo de trabalho, em que são protagonistas
figuras como Maria de Belém Roseira,
do PS, Carlos Miranda, do PSD, e Odete Santos, do
PCP, fez uma lei que tem aspectos contraditórios,
no que diz respeito aos valores que a orientam.
Se ao nível do que são a investigação e os novos
recursos da biotecnologia a lei obedece a critérios
de actualidade, sem pôr em causa critérios éticos,
há aspectos em que a lei é do mais retrógrado que
se podia esperar.
Falando apenas sobre os conceitos de análise
social subjacentes a esta lei, é transparente que,
em relação à reprodução medicamente assistida,
o PS cede ao conservadorismo ultramontano,
uma cedência que só não é ridícula porque é trágica.
Primeiro, a lei apenas reconhece o direito à
reprodução medicamente assistida como solução
alternativa para mulheres inférteis. Ou seja, para
o Estado português a reprodução medicamente
assistida não é um método de concepção alternativo,
mas uma espécie de tratamento da infertilidade.
Além desta visão redutora, a lei assenta
em outro conceito discriminatório e disparatado
e que mais não é do que uma construção católica,
cuja igreja, aliás, anda há séculos a tentar impô-la
à Europa. Ou seja, a ideia peregrina de que para
haver um filho tem de haver uma família e que
para haver uma família tem de haver uma mãe
(mulher) e um pai (homem) a viverem juntos.
Este estereótipo não tem correspondência
histórica em nenhum país da Europa, ao longo
de séculos e milénios mesmo, como prova a
vasta investigação sobre a história da família
e da criança, com dezenas de títulos publicados
e em que são referência autores como François
Lebrun, Jacques Solé, Philippe Ariés, Edward
Shorter e Michael Anderson, só para falar dos
que estão à venda e praticamente todos traduzidos,
em Portugal, há mais de dez ou vinte anos.
Só que os deputados portugueses desconhecem
a história do país e da Europa, da família
ou qualquer outra, como também desconhecem
a sociologia das sociedades europeias e vivem na
presunção de que o mundo começou quando eles
nasceram, assim como parecem não se interessar
por se informar sobre os assuntos sobre os quais
legislam, antes preferem, pelo menos ao que indica
o processo de elaboração desta lei, aplicar à
legislação critérios de teor moral e moralista. Em
Portugal, tal como nos outros países europeus,
a sociedade não é, nem nunca foi, só composta
por famílias de mãe, pai e filhos. Pelo contrário.
A história da Europa é a história de sociedades
compostas por famílias alargadas, cujos membros
nem sempre têm laços de sangue, mas são
protegidos, são a parentela, famílias em que o pai
e a mãe biológicos mudam de parceiros - várias
vezes até, com o aumento da idade média de vida.
As famílias nucleares, as famílias burguesas, são
um fenómeno do século XIX e, sobretudo, do XX
que abrange principalmente as suas elites e que
se vai impondo como modelo. Um estereótipo
vendido como "família tradicional", que não é
tradição de coisa nenhuma, a não ser da mitificação
de sociedade vendida em Portugal, durante o
fascismo, pela máquina de propaganda ideológica
montada por António Ferro.
Mas o Parlamento português vai aprovar uma
lei em que apenas reconhece o direito à inseminação
artificial a mulheres - mesmo que seja
recorrendo a sémen doado - que declarem ter
um marido ou companheiro em união de facto.
A decisão é, repete-se, ridícula, se não fosse trágica.
Senão vejamos. Por que razão uma mulher
infértil não pode ser inseminada artificialmente
recorrendo à doação de ovócitos ou de sémen se
não tiver um homem ao lado para apresentar e
já o pode fazer se tiver o homem, mesmo que este
seja infértil? Por que razão uma mulher não pode
ter um filho se não tiver um homem ao seu lado?
Então por que não é proibida a adopção por mães
solteiras? Por que não proíbem as mães solteiras?
Já agora, por que não proíbem o divórcio quando
há filhos? Se a presença do pai/homem na educação
das crianças é tão imprescindível para a formação
da personalidade, então deve haver uma
percentagem elevadíssima de portugueses com
graves perturbações de personalidade, porque
não nasceram em famílias que correspondam
àquele estereótipo. Já agora, por que razão uma
lésbica não pode ter um filho por inseminação
artificial? Então por que não retiram os filhos
às mulheres que já são mães quando estas iniciam
uma relação afectiva e sexual com outra
mulher? Isto para já não falar de um Governo
que diz que está preocupado com a chamada
crise de natalidade e até anuncia incentivos.
Parece assim que, segundo o PS, a natalidade
não é igual para todos.
O pressuposto desta lei é também profundamente
cínico. E é-o porque é uma lei dissimulada,
não assumida nos seus propósitos. Isto porque
diz que o Estado português reconhece este direito
apenas aos casais e aos cidadãos a viver em
união de facto, mas depois não penaliza. Proíbe,
sem proibir. Ou seja, impede, sem penalizar. O
que na prática vai resultar na situação em que
as mulheres sós e os casais de lésbicas não vão
poder recorrer à comparticipação do Estado ou
aos serviços do Estado para fazerem uma inseminação
artificial. Mas as que têm capacidade
económica vão poder fazê-la em clínicas privadas
em Portugal ou no estrangeiro. E depois apenas
têm de arranjar um amigo homem que assuma
e dê o nome para o registo civil, como já hoje
acontece a muitas mulheres que decidem optar
pela chamada produção independente.
P.S. - Pessoalmente considero que esta lei não
deve ser referendada pelas questões de bioética que
envolve. Mais: a forma como o movimento pró-referendo
conduziu o processo tornou-o inútil. Entregar
as assinaturas na AR no dia da votação final
global do diploma em causa e tentar suspender
o processo legislativo é, no mínimo, desconhecer
a lei do referendo. Para já não falar em falta de
respeito democrático por um Parlamento eleito
pelo voto popular.