Exmo. Sr. Presidente da Assembleia da República
Exmos. Srs. Deputados
Somos parte de um amplo movimento que em Portugal vem mobilizando pessoas com problemas de fertilidade. Após décadas de vazio legal, a recente aprovação em plenário de quatro Propostas de Lei (respectivamente do PSD, PS, BE e PCP), com o objectivo de regular as técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA), suscitou entre nós as maiores expectativas. Sendo o nosso quotidiano marcado por constrições médicas, económicas, éticas, familiares e pessoais, a perspectiva de vermos finalmente aprovado um diploma regulando a utilização, o acesso e o financiamento da PMA não podia deixar de nos despertar um sentimento muito profundo de alívio e de esperança. O mundo da infertilidade e da PMA, tal como o conhecemos em Portugal, prometia ser em breve uma recordação do passado: as listas de espera com prazos biologicamente inaceitáveis em hospitais públicos, sem lugar para mulheres com mais de 38 anos; a corrida às clínicas privadas, com custos muito acima do permitido pelos salários nacionais; a recusa das Seguradoras em aceitar uma doença reconhecida pela Organização Mundial da Saúde; a discriminação quase aleatória entre pessoas inférteis com base no estatuto marital; a peregrinação obrigatória de residentes no Algarve ou nas Ilhas aos hospitais e clínicas acumulados na capital; a peregrinação ainda mais brutal às clínicas espanholas, numa viagem que hoje, na questão da infertilidade como noutras, nos é imposta por aqueles que no nosso país nos negam o direito à saúde e à procriação.
Se a análise dos referidos Projectos de Lei nos permitiu antecipar desde logo divergências em aspectos críticos para o tratamento adequado, humanizado e em prazos razoáveis dos diversos casos de infertilidade, as notícias recentes sobre os “compromissos” da Comissão de Saúde deixaram-nos a todos num estado de pura consternação. Não bastava às pessoas inférteis a infelicidade da doença, não bastava o desprezo institucional a que vinham sendo votadas, agora perspectiva-se um diploma que definitivamente legitima a segregação oficial das pessoas inférteis: discrimina-se entre as que têm ou não gâmetas próprios; entre os homens (com direito ao estatuto de dador de sémen) e as mulheres (sem direito ao estatuto de dadoras de ovócitos); entre as pessoas que têm mais ou menos dinheiro para aceder imediatamente às clínicas privadas no estrangeiro; discrimina-se ainda, no ano de 2006!, entre as mulheres casadas (ou em união de facto) e as que vivem sozinhas. Consideramos estas formas de discriminação absolutamente inaceitáveis num Estado de Direito. Além de atentarem contra princípios fundamentais da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (1979), ambas adoptadas pelas Nações Unidas, estas medidas apenas viriam acrescentar o nosso sofrimento.
Exmo. Sr. Presidente da Assembleia da República
Exmos. Srs. Deputados
A infertilidade é uma doença com uma prevalência que se estima atingir 15 a 20 % da população em idade reprodutiva. Existem, portanto, cerca de 500.000 portugueses afectados pela infertilidade. Numa altura em que as sociedades ocidentais se debatem com a perspectiva de um desastre demográfico, as restrições no acesso à PMA são um contributo adicional para a falência do modelo de Segurança Social que conhecemos. O acesso às técnicas de PMA faz ainda parte do direito dos indivíduos, mormente dos indivíduos doentes — de todos os indivíduos doentes —, aos benefícios do progresso científico e às suas aplicações, como consta do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966), igualmente aprovado pela Assembleia das Nações Unidas. Como doentes inférteis, sentimos que Portugal não tem neste âmbito sequer um défice tecnológico, antes pelo contrário. A nossa experiência mostra-nos, todos os dias, que entre nós o verdadeiro défice é antes da ordem das mentalidades e do preconceito. No que nos diz respeito, recusamo-nos, em caso algum, a sermos empurrados para Espanha, para aí aplacarmos a má-consciência de terceiros, à custa do nosso sacrifício pessoal, do dinheiro que não temos e da saúde que nos resta.
A posição que a seguir enunciaremos não resulta contudo de um desejo simplista de argumentar em causa própria. A “Comissão Instaladora” da Associação Portuguesa de Infertilidade teve ocasião de debater internamente cada um dos aspectos assinalados, de estudar os pareceres do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e o posicionamento de institutos congéneres no estrangeiro, de consultar demoradamente a legislação produzida em mais de uma dezena de países e de se informar sobre o estado actual da investigação científica na área da reprodução humana. Para além deste conjunto de elementos, a nossa posição surge obviamente informada pelo enorme capital de experiências acumuladas no que diz respeito à vivência da infertilidade. A nossa proximidade relativamente ao assunto em debate permite-nos olhar para o articulado dos Projectos de Lei de uma forma que julgamos merecedora da maior atenção, justamente por articular as questões ético-jurídicas, que naturalmente nos preocupam enquanto cidadãos responsáveis, com a percepção de indivíduos directamente afectados pela infertilidade.
Dirigimo-nos, pois, à Assembleia da República, representando as pessoas inférteis que de uma forma clara se desejam posicionar perante as várias propostas em discussão, reafirmando um conjunto de princípios que entendemos fundamentais para a resolução efectiva das várias formas de infertilidade que hoje vitimam milhares de portugueses:
1.º — Todos os casais e todas as mulheres inférteis devem ter acesso às técnicas de Procriação Medicamente Assistida;
2.º — Sendo a infertilidade internacionalmente reconhecida como uma doença, cumpre ao Estado assegurar o seu adequado tratamento a casais e mulheres inférteis, através do Serviço Nacional de Saúde, assumindo o custo dos 5 primeiros tratamentos, incluindo a medicação necessária, por cada filho;
3.º — Por motivos idênticos, os seguros de saúde devem garantir obrigatoriamente os 5 primeiros tratamentos, incluindo a medicação necessária, por cada filho;
4.º — Nos casos em que o Serviço Nacional de Saúde não possa garantir o atendimento das pessoas inférteis em prazos medicamente aceitáveis, os doentes devem ter o direito de recorrer às clínicas privadas, como hoje acontece com outras doenças em Portugal. Os prazos em causa devem ser fixados antecipadamente pela Entidade Reguladora de Procriação Medicamente Assistida, prevista nos 4 Projectos de Lei;
5.º — Consideramos que os beneficiários da PMA devem ter a idade mínima de 18 anos, excepto em casos devidamente autorizados pela Entidade Reguladora de Procriação Medicamente Assistida. A idade máxima deve ficar ao critério exclusivo da equipa médica;
6.º — As técnicas usadas devem incluir a inseminação artificial, a fertilização in vitro, a injecção intra-citoplasmática de espermatozóides, a transferência de embriões, gâmetas ou zigotos e demais técnicas laboratoriais de manipulação genética equivalentes ou subsidiárias, existentes ou a ser desenvolvidas;
7.º — Devem ser igualmente permitidas a) a maternidade de substituição, para mulheres com defeitos congénitos do útero ou sem útero e b) o diagnóstico genético de pré-implantação (DGPI), nos casos recomendados e quando a mulher beneficiária tenha um filho anterior afectado por doença grave e incurável que só assim possa melhorar decisivamente a sua condição, sem prejuízo da integridade da criança nascida da transferência de embriões;
8.º — Deve ser permitida a doação anónima de sémen, de ovócitos e de embriões. Entendemos que a disponibilização conjunta destas alternativas é condição absolutamente essencial, não só para enfrentar as diversas causas de infertilidade, mas para resolver os problemas que por vezes se colocam ao longo dos tratamentos;
9.º — Entendemos que a inseminação in vitro e/ou o uso de embriões congelados devem ser permitidas mesmo após a morte do homem, desde que o casal tenha anteriormente entrado num tratamento conjunto de infertilidade. Esta possibilidade deve vigorar nos 2 anos seguintes à ocorrência da morte;
10.º — Não deve haver limitações no número de ovócitos a fecundar, ficando a decisão ao critério da equipa médica;
11.º — Deve limitar-se a 3 o número de embriões a transferir para o útero em cada ciclo, sem especificações etárias. Compete à equipa médica e ao doente, perante situações concretas, a determinação exacta do número de embriões a transferir, até um limite de três;
12.º — Entendemos que a Associação Portuguesa de Infertilidade deve vir a integrar a futura Entidade Reguladora de Procriação Medicamente Assistida.
Pela presente Carta Aberta vimos publicamente expor as nossas razões e solicitar encarecidamente à Digníssima Assembleia da República a apreciação das nossas sinceras preocupações. Na certeza de que a presente missiva merecerá a maior atenção, subscrevemo-nos com elevada estima e consideração.
assoc.portuguesa.infertilidade@gmail.com