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Opinião

Dos Direitos Humanos aos Direitos das Minorias Sexuais: impactos locais de uma luta globalizada




Abr 2004

Dos Direitos Humanos aos Direitos das Minorias Sexuais: impactos locais de uma luta globalizada
Ana Cristina Santos

Apresentação da dissertação de Mestrado, orientada por Boaventura de Sousa Santos e arguida por Miguel Vale de Almeida
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Coimbra, 16 Abril 2004

As sexualidades têm estado ausentes da sociologia portuguesa. Contam-se ainda pelos dedos das mãos (talvez das duas, para ser optimista) os estudos sobre orientação sexual e identidade de género. A produção desta invisibilidade coloca uma responsabilidade acrescida às ciências sociais, mas também desafios intelectuais estimulantes.
Quando iniciei em 2000 o estudo do movimento lésbico, gay, bissexual e transgénero (LGBT) português, parti desta questão:
De que forma é que a praxis das associações LGBT portuguesas se tem articulado com o discurso dos direitos humanos defendido pelas instituições europeias? Portanto, foi sobre acção pública do movimento LGBT português que tratou este estudo. Mais especificamente, procurei averiguar se a utilização do regime europeu de direitos humanos por parte deste movimento social constitui uma estratégia para legitimar publicamente a luta, recuperar demandas globais à luz de especificidades locais, permitir ligações a outros movimentos sociais e impulsionar avanços jurídicos. Estas quatro vertentes plasmaram-se em hipóteses de trabalho, como veremos adiante.
O Estado português, enquanto membro da UE, do Conselho da Europa e da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, está ética e politicamente comprometido com a construção de uma sociedade inclusiva, livre de violações de direitos por motivos de, por exemplo, orientação sexual ou identidade de género. Contudo, tem recaído sobre a sociedade portuguesa, nomeadamente movimentos sociais, a exigência de leis que assegurem o respeito pelos direitos fundamentais. O estudo demonstra que, no caso da população LGBT portuguesa, os seus direitos são violados nas variadas instâncias públicas e privadas. É neste jogo entre local e global, por um lado, e político e social, por outro, que se constrói publicamente o movimento LGBT português.

Espreitemos brevemente a estrutura desta dissertação.
Nos capítulos 1 e 2 procedo à contextualização histórica e problematização teórica dos direitos humanos e dos direitos sexuais
No capítulo 3 são consideradas instituições europeias face à temática LGBT bem como as implicações teórico-empíricas dos direitos humanos LGBT
No capítulo 4 apresento o objecto de estudo: tema, hipóteses de trabalho, metodologia, notas de auto-reflexividade e enquadramento teórico
O enfoque do capítulo 5 está nos marcos internacionais do movimento (Stonewall, "Gay Pride", luta conta a SIDA) e os custos associados à globalização do movimento.
O capítulo 6, centrado sobre o caso português, ilustra a construção social das sexualidades, actores, eventos, reivindicações, redes com outros grupos e bloqueios e impactos dos direitos humanos LGBT.
No capítulo 7, porventura o capítulo central da dissertação, procedo ao teste das hipóteses de trabalho e avalio o papel do jurídico ao serviço de um novo movimento social
Finalmente, as conclusões são apresentadas no capítulo 8.

Em termos metodológicos, a minha abordagem foi plural, diversificada, mais qualitativa do que quantitativa.
Quanto a técnicas de análise documental, destaco quatro:
1. Recolha e análise da designada literatura cinzenta, i.e., materiais produzidos pelas associações LGBT quer para circulação interna (boletins ou newsletters), quer para divulgação pública (comunicados de imprensa, panfletos ou flyers, etc.).
2. Levantamento bibliográfico, enfatizando produção recente e estudos de caso sobre o movimento LGBT em diversos países europeus.
3. Actualizei o observatório de imprensa que iniciara em 1998 sobre temáticas LGBT em Portugal, incidindo sobre os jornais Público e Expresso e a revista Visão.
4. Recolha da legislação nacional sobre direitos humanos e direitos sexuais.

Relativamente a técnicas de observação, fiz observação participante nos eventos públicos do movimento entre Janeiro 2000 e Dezembro 2003 (marchas, arraiais, festivais, conferências, Fórum LGBT, 1º Fórum Social Europeu e 1º Fórum Social Português).
Realizei também entrevistas semi-estruturadas junto de dois conjuntos de informadores privilegiados. O 1º, exploratório, inclui um cientista social e quatro activistas estrangeiros. O 2º conjunto reporta-se a dez líderes de organizações LGBT portuguesas.
Por fim, quanto a informação de cariz quantitativo, apliquei um 1º inquérito por questionário a activistas nacionais e internacionais participantes no Encontro Anual da ILGA-Europa (Lisboa, Outubro 2002) e um 2º inquérito por questionário a líderes LGBT portugueses. Os 30 inquéritos foram tratados estatisticamente por SPSS.

O jurídico apresenta potencialidades e riscos para o activismo LGBT.
A protecção jurídica não garante, per se, o cumprimento dos direitos estabelecidos. Mesmo após mudanças legislativas, ainda nos reportamos a quadros legais extemporâneos por via do hábito ou atribuição de valor moral independentemente da evolução legislativa. Na esfera das sexualidades, a dependência face a disposições legais revogadas é consolidada pelo que se designa por homofobia internalizada. Ciente destes obstáculos, no meu trabalho reconheço três potencialidades que a via jurídica comporta para o activismo LGBT: Em 1º lugar, o adensamento dos vínculos de pertença identitária e comunitária. A visibilidade mediática força a mudança desde um registo abstracto de vergonha e preconceito para um outro, de indignação e resistência activa. Outra potencialidade da via jurídica reside no empowerment simbólico. Para um grupo remetido para o silêncio e clandestinidade, ver juridicamente protegida a sua dignidade humana é uma conquista. Portanto, a legitimação decorrente de um reconhecimento público capacita os sujeitos e esse facto não é menor. Finalmente, a visibilidade pública LGBT constitui uma importante fonte de capital ideológico. Assim, a arena jurídica funciona como cenário de produção cultural simbólica, estimulando mobilização, criando expectativas e indignação e construindo marcos de participação cidadã.

Mas uma abordagem jurídica por parte do movimento LGBT apresenta também riscos. Identifico três.
Quem define padrões é quem está no topo da pirâmide do poder. É devido ao risco de homogeneização que o discurso em defesa da igualdade tem sido criticado com o argumento de que "direitos iguais" visam, em última instância, anular a diversidade de modelos possíveis. Alicerçar as reivindicações LGBT nos instrumentos jurídicos disponíveis abre também caminho para a crescente politização da sexualidade. Ao defender uma intervenção política, o movimento LGBT sujeita-se à possibilidade de maior regulação e controlo públicos. A lei pode então funcionar não como instrumento de emancipação, mas antes como escudo de retórica e demagogia que impede a mudança. Considero ainda o risco de descaracterização e a possibilidade de subversão do activismo LGBT por via da sua eventual subordinação à esfera jurídica. Ou seja, o direito como agente de desmobilização da organização colectiva, substituída por acções atomizadas.

Passemos para as hipóteses de trabalho levantadas.

Quanto à 1ª hipótese, verifica-se uma acentuada centralidade discursiva do argumentário jurídico, canalizando grande parte das reivindicações do movimento. No que respeita à questão mais específica dos direitos humanos, se, num 1º momento, a sua utilização era relativamente dispersa e pouco robusta, gradualmente o movimento LGBT tem vindo a assimilar a retórica dos direitos humanos enquanto fonte de legitimação social e ideológica da sua luta. Tal mudança é muito recente, culminando nos momentos de maior visibilidade junto da opinião pública (Marchas ou FSP). À luz do trabalho de campo efectuado, confirmei a centralidade do argumentário jurídico e, mais recentemente, da retórica dos direitos humanos enquanto âncora da agenda e da afirmação - interna e externa - do movimento LGBT português.
Relativamente à 2ª hipótese, constatei que a apropriação dos direitos humanos por parte do activismo LGBT em Portugal se opera por via da reconstrução da própria categoria de direitos humanos. Identifico três especificidades nacionais: A 1ª centra-se na recuperação de um discurso de ruptura, cujos referenciais ideológicos oscilam entre Stonewall em 1969 e o 25 de Abril de 1974. A visibilidade social da temática LGBT durante o Fórum Social Português levou activistas a considerá-lo como o momento de maior emancipação sexual no país. Surge por esta via a equivalência local do significado global de Stonewall. A 2ª especificidade regista-se no espectro conceptual da própria categoria "direitos humanos" tal como ela é interpretada pelo movimento. Assim, mais do que direitos consagrados em documentos reconhecidos internacionalmente, caminha-se para um entendimento abrangente e plural do que esses documentos significam de facto. A 3ª especificidade reside no que designei por abordagem interpessoal, ou seja, um discurso que usa o chapéu largo dos direitos humanos para depois se centrar na estratégia do cara-a-cara, caso a caso, com raízes muito comunitárias e locais. Cabem aqui as preocupações com as bases da comunidade LGBT (como o suicídio adolescente ou a homofobia internalizada). Portanto, confirma-se a 2ª hipótese pois o discurso global dos direitos humanos assume atributos específicos quando reapropriado pelo movimento LGBT português, responsável pela sua utilização estratégica e selectiva, configurando assim os contornos de um globalismo localizado.
A minha 3ª hipótese verificou-se parcialmente, uma vez que o argumento dos direitos humanos enquanto base de proximidade entre diversos movimentos sociais à escala nacional é ainda muito recente e protagonizado sobretudo pelas camadas mais jovens do activismo. Com efeito, ao constituir uma escolha clara de activistas com idade inferior a 30 anos é possível que estejamos num momento de ascensão dos direitos humanos enquanto ferramenta de trabalho para o movimento LGBT em Portugal. Sendo esse o caso, as pontes mais consolidadas parecem ligar este movimento aos direitos das mulheres, sindicatos e lutas contra o racismo e a xenofobia.
Finalmente, a 4ª hipótese. É notória uma utilização gradual das instituições europeias como forma de pressão, à semelhança do que sucede com a retórica dos direitos humanos. Considero que o recurso à Europa se opera por 3 vias. A 1ª tem como alvo o Estado português. A 2ª visa a opinião pública em geral e exerce-se, por exemplo, através dos comunicados de imprensa. A última via de utilização das instituições europeias destina-se ao próprio movimento, consistindo num instrumento de renovação interna da identidade LGBT. Para além da utilização das instituições europeias, o movimento LGBT português participa do discurso globalizado dos direitos humanos através, por exemplo, da relação desenvolvida com a Amnistia Internacional. Concluí que esta última hipótese se verificava apenas parcialmente, dado que as pressões exercidas pelo movimento LGBT sobre o Estado português - um dos indicadores da globalização de baixo para cima - não têm sido consistentes ao longo da história deste movimento. Todavia, dados decorrentes dos inquéritos por questionário às lideranças mais jovens bem como a praxis do movimento em 2003 revelam uma apropriação estratégica dos direitos humanos enquanto instrumento de pressão.

Posto isto, avancei com algumas propostas teórico-analíticas.

Os sistemas de desigualdade e exclusão resultam de complexas teias de poder, através das quais grupos hegemónicos impõem linguagens, ideologias e crenças que implicam a rejeição, a marginalização ou o silenciamento de tudo o que se lhes oponha. Quando falamos de igualdade e diferença estamos necessariamente condicionados por um contexto que não é, pois, neutro. Nesta óptica, proponho o conceito de universalismo útil para designar uma política em que a difusão dos princípios de não discriminação se articula com recursos identitários valorizados pelos sujeitos. Assim se torna possível defender uma aplicação generalista das leis e, simultaneamente, uma protecção jurídica direccionada a um grupo excluído. Um universalismo útil, moldado pelo compromisso entre direitos universais e especificidades culturais, é condição necessária à construção de modelos jurídicos multiculturais em sentido emancipatório. Tal concepção parece plasmar-se na aprovação parlamentar de ambos os diplomas visando a economia comum e as uniões de facto independentemente da orientação sexual.
Embora a práxis política deste movimento incida sempre em exigências de mudança na legislação nacional, inicialmente a forma como a ausência ou violação destes direitos era denunciada exercia-se sobretudo através do debate entre pares ou de diligências junto de alguns círculos partidários. Em 2003, mais de uma década após a criação da 1ª organização LGBT no país, assiste-se a uma profusão de estratégias tais como comunicados de imprensa, acções de rua, instaurações de processos, propostas de alteração legislativa ou conferências partilhadas com outros movimentos.
Partindo do pressuposto de que, tal como a hegemonia, também os processos de resistência têm muitas frentes, sugeri uma abordagem ao activismo LGBT português baseada na teoria dos espaços estruturais de Boaventura de Sousa Santos. Entre estas frentes contam-se o espaço doméstico, no qual o reconhecimento das uniões de facto constitui um esforço de democratização dos modelos familiares; o espaço da produção, cuja ilustração são as conversações iniciadas em 1999 com CGTP, cujo resultado recente foi a criação do Departamento de Igualdade e Combate às Discriminações; o espaço do mercado, no qual se procura promover espaços de diversão e difundir símbolos de uma cultura LGBT; o espaço da comunidade, onde se situam variados grupos e associações desde 1990; o espaço da cidadania, arena jurídica por excelência, onde se travam lutas pela não discriminação e pela protecção legal; e o espaço mundial, valorizando a forma epistemológica da cultura global, da agenda dos direitos humanos e dos modelos globalizados de activismo.
Aplicada a teoria dos espaços estruturais, recuperei alguma da teorização avançada por Foucault, designadamente no que respeita ao conceito de heterotopia. Propus então que a acção do movimento LGBT transforma os direitos humanos em heterotopias foucaultianas, ou seja, contra-lugares que contrastam com todas as realidades existentes num determinado contexto, representando, contestando ou invertendo tais realidades. Mediante uma análise dos 6 princípios que regem este conceito de heterotopia, sugeri que os direitos LGBT constituem de facto heterotopias dos direitos humanos, uma vez que os amplificam, contestam e problematizam. Uma vez mais a crítica auto-reflexiva busca maximizar o potencial uso estratégico do direito internacional.

Em suma...

Historicamente associada a um espaço público masculinizado e heterossexista, é na arena da cidadania que se concentram esforços de participação nas políticas sexuais em Portugal. Constata-se que o uso do direito internacional na promoção do respeito pela dignidade humana, independentemente da orientação sexual e da identidade de género, é possível. Bastaria para tal que os instrumentos jurídicos existentes nas diversas escalas locais, nacionais, regionais e globais alargassem o seu espectro de acção à protecção contra discriminação de lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros.
Toda a investigação reforçou a ideia de que a arena jurídica é a forma de acção preferencial do movimento LGBT português. A aproximação ao direito tem sofrido algumas alterações recentes, sobretudo na utilização mais concertada do argumentário dos direitos humanos. Como vimos, esta tendência verifica-se principalmente entre as lideranças mais jovens, permeáveis ao discurso europeu e envolvidas em parcerias com organizações internacionais. Esta praxis que parte dos direitos humanos enquanto instrumento simbólico conduz a uma recuperação do conceito de emancipação sexual, desta feita aferido pelos diversos indicadores considerados ao longo da dissertação, nomeadamente o grau de legitimação social obtido (aceitação por parte da opinião pública e cobertura mediática), a intensidade das inteligibilidades recíprocas entre diversos movimentos sociais (participação em eventos, parcerias formalizadas) e o nível de capacitação de activistas (domínio de instrumentos jurídicos nacionais e transnacionais).

Ao acolher e incentivar um discurso de igualdade, o suporte dos direitos humanos permite averiguar o modo como uma agenda transnacional serve de alicerce para lutas fortemente condicionadas pelo contexto socio-jurídico de um país. Neste sentido, o movimento pela defesa dos direitos humanos das lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros remete-nos para uma realidade complexa, heterogénea e fluida, onde o respeito pela dignidade do ser humano em toda a sua amplitude e diversidade continua ainda a ser um objectivo, mais do que uma conquista. Uma utopia, dirão os mais cépticos, esquecendo-se que, como Boaventura de Sousa Santos insiste em lembrar, toda a realidade é utópica até ao exacto momento da sua concretização.
Dada a amplitude das diferenças históricas, culturais, políticas e sociais que caracteriza as sociedades contemporâneas, não me parece prudente nem tão-pouco exequível buscar um conjunto de princípios que funcione qual manual de instruções do movimento-social-português. Com efeito, é possível que, numa mesma sociedade e relativamente a um fenómeno social idêntico, as estratégias tenham de diferir em momentos históricos distintos. Mas à luz do que foi analisado, defendo que a via jurídica constitui um caminho com elevado potencial para o reconhecimento e aplicação dos direitos humanos LGBT, sendo esse processo tanto mais profícuo quanto maior atenção for atribuída aos riscos inerentes. Um primeiro passo será, por isso, a potenciação dos recursos e oportunidades que a lei oferece na esfera da dignidade humana. Mas este será apenas, necessariamente, um primeiro passo.



Ana Cristina Santos pode ser contactada através do email: cristina@ces.uc.pt

 
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