Em Real Boy, de Shaleece Haas, descobrem-se três realidades: a dele, a da mãe e a do amigo. O processo, sendo pessoal, não foi solitário. Bennett Wallace e o seu amigo na mesma fase do processo, apoiam-se via net enquanto fazem tratamento para aumentar os seus níveis de testosterona, os dois combinaram as sessões para os mesmos dias e as mesmas horas e partilham o ato on-line através do Skype.
O "senão" de Wallace é a negação da sua mãe: sempre presente mas questionando-se e temerosa do processo do filho. Uma inquietação que cai por terra quando Wallace vai para cirurgia mamária e ela aceita, finalmente, a situação.
Na realidade senti o filme quase como um tutorial sobre o que fazer (e não fazer) perante uma situação de transição, perante a revelação de alguém que não se identifica com o seu corpo. Mas também vi uma aula de solidariedade independente de contextos.
Outro destaque nas sessões do dia foi O tempo antes não acabava dos realizadores Fábio Balde e Sérgio Andrade, este último presente na sala Manoel de Oliveira do São Jorge.
Aqui o tema foi a alegada integração dos índios da Amazónia na selva urbana de Manaus. Anderson, o seu nome de branco, depois de fazer a cerimónia que o define como homem (Ritual da Tucandeira ou Sataré-Mawé) projeta-se para fora da Amazónia. A cidade grande é agora a sua selva e o desejo de experimentar leva-o à descoberta da sua sexualidade à realização das suas fantasias, entre muitas coisas que o Anderson nos mostra, está a sua desconfiança pelas ONG, um nome que ele não acredita. Mas este filme mostra algo que com a distância do Atlântico não nos damos conta: o desmoronar destes seres humanos perdidos nestas árvores e montanhas de betão, onde procuram um nome de branco para sobreviver, mas depois a sua condição nas feições de indígena lhes barram a esperança de uma vida melhor. O suicídio ou a morte por intoxicação quer por drogas quer por álcool são uma realidade incontornável.
Mas Sérgio Andrade, o realizador presente na sala, foi absorvido pela inquietação dos presentes sobre o infanticídio impensável nos dias de hoje numa sociedade dita evoluída. Presente no filme, Anderson perde a sua sobrinha porque esta é deficiente e, segundo os rituais de sobrevivência da tribo que faz parte, ela tem de morrer. Chocante é de certeza, mas mais chocante na conversa que os presentes tiveram com Sérgio Andrade foi ficarmos a saber que esta prática continua nos dias de hoje no meio da cidade, muitas vezes com desfechos menos interessantes para todos.
“Não há nada que eu conheça na cinematografia brasileira sobre o assunto” disse Sérgio e já mais em off reforçou que nem mesmo em canais conhecidos por explorar as vivências tribais em grandes documentários existe nada sobre esta questão.
O mundo e o ser humanos ainda não sabe quase nada de si.
João Paulo, editor PortugalGay.pt
Fotos do dia