A história foi revelada pelo diário espanhol El País e levou a ILGA-Portugal a escrever, anteontem, uma carta indignada ao primeiro-ministro, José Sócrates. Na missiva, referia receber "queixas recorrentes de cidadãos e cidadãs da República Portuguesa que, após terem casado com pessoas do mesmo sexo (mas de outras nacionalidades) no Canadá, na Bélgica e na Holanda, não vêem o seu casamento reconhecido em Portugal".
Um português que se casou na Holanda com um holandês já recorreu ao provedor de Justiça, mas o provedor "optou por confirmar a decisão" dos serviços. A impossibilidade de transcrição decorre da legislação portuguesa - o artigo 1577.º do Código Civil restringe o casamento a pessoas de sexo diferente.
A ILGA, que se bate pelo fim do "apartheid no acesso ao casamento civil", avaliava o caso da lésbica residente em Madrid como "mais gritante". Tudo porque o próprio Consulado de Portugal em Madrid afirmara, numa nota citada pelo El País, ter instruções para não tratar dos certificados de capacidade de matrimónio quando o objectivo era um casamento homossexual.
Afinal, terá havido uma má interpretação nos serviços consulares. "Não existem quaisquer instruções para não colaborar com cidadãos portugueses que pretendem casar com pessoas do mesmo sexo em Espanha ou em qualquer outro Estado cuja lei consagre o casamento" gay e lésbico, atesta a Direcção-Geral de Registos, numa nota enviada ao PÚBLICO.
As referidas instruções "destinam-se a esclarecer os serviços da impossibilidade de emitir certificados de capacidade matrimonial apenas e quando a lei do Estado estrangeiro, onde as pessoas se pretendem, exija que o casamento entre pessoas do mesmo sexo seja admitido pela lei do Estado da sua nacionalidade", salienta a mesma nota. Ora, esta imposição "não se verifica na lei espanhola".
A lésbica portuguesa parece ainda ter-se precipitado ao decidir adquirir a nacionalidade espanhola para poder casar. Mesmo que Portugal recusasse passar o certificado, tal não constituiria um impeditivo em Espanha. Num casamento formulado por um cidadão espanhol e um português, este certificado pode ser substituído por "uma declaração ajuramentada e solene do interessado".
Como explica o jurista Carlos Pamplona Corte-Real, os serviços consulares podem efectuar o processo de averiguação de capacitação matrimonial de um português que queira casar-se no estrangeiro, verificando o estado civil (para evitar a poligamia), o grau de parentesco (para evitar o incesto) e o sexo dos nubentes (para garantir que são heterossexuais).
Só assim, os consulados ou postos consulares podem transpor o casamento previamente registado pelas autoridades locais. Mas há muitos emigrantes que não chegam a tratar destes trâmites. Sem esta transposição, o casamento é válido no país de residência, mas inválido em Portugal.
Como não pretende o reconhecimento do seu casamento em Portugal, a lésbica lusa podia ter driblado o mal-entendido dos serviços consulares. Bastava-lhe pedir os documentos necessários (como a certidão de nascimento) sem revelar o motivo. Podia fazê-lo no consulado ou em Portugal.
Mal-entendidos à parte, a história volta a trazer à ordem do dia um tema que foi alvo de debate público em Fevereiro, quando Teresa e Helena tentaram casar-se numa conservatória de Lisboa. O pedido foi indeferido e o casal recorreu para o Tribunal Cível, já que a Constituição proíbe qualquer discriminação com base na orientação sexual. O caso subiu à Relação, depois de a primeira instância ter confirmado a recusa da conservatória.