No dia 17/7/03, sob o título de primeira página "Dez em cada cem seropositivos já não obedecem ao tratamento", publicou o PÚBLICO uma notícia que interpreta erradamente, no nosso entender, os resultados de um estudo apresentado esta semana na conferência internacional sobre sida, em Paris.
Em primeiro lugar, não podemos deixar de protestar contra o próprio título escolhido para a primeira página do jornal. Com efeito, a frase é falsa e discriminatória. Falsa, porque não faz sentido falar de "dez em cada cem seropositivos" a propósito de tratamentos para a infecção pelo VIH, quando a imensa maioria das pessoas infectadas não tem acesso aos tratamentos: estamos a falar de milhões de africanos e asiáticos. É discriminatória, porque a transformação de "dez por cento que já têm resistência aos medicamentos", como escrito no texto imediatamente abaixo e na notícia, em "dez por cento que não obedecem ao tratamento" é objectivamente uma tentativa de culpabilização dos seropositivos pela falha do seu tratamento.
Esta transformação é, claramente, resultado de uma interpretação (dos resultados do estudo) por um "especialista" entrevistado, que aponta exclusivamente as pessoas em tratamento como as únicas responsáveis pela sua falha. É de lamentar que a direcção do PÚBLICO não tenha tido em conta as declarações de outras pessoas, transcritas na própria notícia, nomeadamente as do presidente da Sociedade Internacional de Sida, segundo o qual "a resistência é algo que nunca se vai conseguir controlar, porque o vírus jamais perderá a sua habilidade de se alterar em resposta aos tratamentos".
É sabido que a taxa média de adesão aos tratamentos em qualquer doença crónica é significativamente inferior à que, no caso da infecção pelo VIH, é necessária para impedir o aparecimento de resistências do vírus aos fármacos. Infelizmente, basta uma adesão de cerca de 90 por cento (ou seja, perder uma toma de medicação em cada dez, por exemplo, uma pessoa perder uma a duas tomas por semana num regime de duas tomas diárias) para que a probabilidade de desenvolvimento de resistências seja grande. E para perder algumas tomas basta que a farmácia do hospital esteja em rotura de "stock" de um ou mais dos medicamentos da combinação terapêutica. Nem esta (infelizmente) banal ocorrência é tomada em conta pelo "especialista". Nem a ocorrência de efeitos tóxicos dos medicamentos. Nem os acidentes do quotidiano, que têm maior probabilidade de ocorrência quanto maior a duração de um tratamento.
Devido à complexidade das terapêuticas de combinação anti-VIH é necessária e fundamental, além de uma grande motivação das pessoas em tratamento, uma eficaz formação dos clínicos para efeito de um bom acompanhamento médico, sabendo-se que em Portugal, e não só, o problema das resistências tem também uma quota importante (30 a 40 por cento) devido a má prescrição médica.
Culpabilizar as pessoas infectadas pela falha do seu tratamento é fácil.
Encontrar resposta para o problema da adesão continuada aos tratamentos é difícil.
João Paulo Casquilho
membro do G.A.T. - Grupo Português de Activistas sobre Tratamentos de VIH/Sida - Pedro Santos