Oficialmente, a festa Porto Pride 2005 começou às 22h30 de anteontem. Mas a verdade é que só na madrugada de ontem o Teatro Sá da Bandeira, na Baixa da cidade, começou a dar sinais de pujança: o átrio junto ao palco e os corredores encheram-se de gente, a conquista de centímetros quadrados ao balcão do bar tornou-se um pouco mais árdua e a música ganhou mais força e adeptos. Já se podia ver casais homossexuais trocando afagos tranquilamente e até beijos descomplexados. Algo possível num evento como este, que assinala não só o orgulho de ser diferente, mas também reivindica direitos iguais e assume um papel de intervenção social e política. Sem a protecção de um espaço fechado, a comunidade homossexual parece não ter no Porto as condições necessárias para mostrar o rosto.
Vergonha da própria orientação sexual? Não, muito pelo contrário. Pelo menos é o que garante João Paulo, militante incansável do Portugalgay.pt e organizador da Porto Pride deste a sua primeira edição, em 2001. "Um grande número de gays simplesmente perde o emprego ou é expulso de casa se revelar a sua opção sexual. As pessoas não se escondem por falta de orgulho. É um jogo muito cruel, nem todos podem dar a cara como eu, que não tenho nada a perder", explica o responsável, com um arco-íris - um dos símbolos desta causa - pintado na cabeça rapada recentemente.
Pelo menos na madrugada de ontem, cerca de dois mil gays, lésbicas, bissexuais, transgenders e heterossexuais divertiram-se sem constrangimentos. O bilhete custava dez euros, um valor que dava direito a uma bebida e reverte em favor do Hospital de Joaquim Urbano, no Porto. Até hoje, este estabelecimento de saúde para o tratamento de doenças infecciosas já recebeu mais de 10.300 euros da Porto Pride. Esta vertente social facilita a obtenção de apoios , além de ajudar a diluir eventuais homofobias. "Não faria nunca a festa pela festa, é preciso haver aqui uma intervenção política. E, por outro lado, é uma forma de dar um doce à sociedade tripeira", sublinha João Paulo.
"Daqui para baixo pode mostrar, mas o rosto não. Nem pensar. Estou à frente de uma empresa com três mil empregados", avisou ao fotógrafo do PÚBLICO um homem baixo, com o cabelo retesado à força de gel e uma camisa justinha de algodão branco. Ao seu lado, Paulo, de 28 anos, faz a mesma ressalva. Os seus pais já sabem de tudo, conta o rapaz, mas na sua empresa ninguém desconfia que já foi "casado durante seis anos com uma pessoa". A cada ano que passa, os jornalistas parecem ouvir as mesmas justificações. Uma repórter de um canal privado de televisão comentava, pelas 2h00 de ontem, que só havia recolhido testemunhos na penumbra da pista de dança.
Em 2001, recorda o organizador do Porto Pride, as pessoas que festejavam numa discoteca na margem do Douro entraram em pânico quando perceberam que havia três carrinhas de televisão à porta da festa. Tudo acabou bem. João Paulo conversou com os repórteres e garantiu aos foliões total anonimato. "A nossa relação com a imprensa sempre foi óptima, as reportagens sempre foram feitas com o maior cuidado", congratula-se.
O próprio convite à imprensa continha instruções que dão a medida do problema. "Toda a área do evento está aberta aos jornalistas para entrevistas e reportagem. Informamos, no entanto, que a recolha de imagens no recinto é limitada, devendo haver consentimento expresso das pessoas representadas e os planos gerais deverão ser feitos desfocados", lia-se no comunicado.
No mesmo dia em que pelo menos um milhão de homossexuais espanhóis marchava ao ar livre em Madrid, celebrando a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, os organizadores apelavam à "compreensão" dos meios de comunicação, lamentando que "no Portugal do século XXI" a participação numa festa deste género possa "trazer graves danos às pessoas em causa".
Será que, passados cinco anos, podemos dizer que nada mudou no Porto? "A sociedade no Porto está menos hipócrita. E a admitir que temos de viver em paz uns com os outros", avalia João Paulo. Prova disso é o aumento do número de apoios. Este ano, por exemplo, um complexo de salas de cinemas associou-se à iniciativa, cedendo espaço de divulgação nos ecrãs gigantes. Duas empresas de bebidas alcoólicas, uma rádio e uma gráfica também ajudaram à concretização do evento. O patrocinador principal, no entanto, continua a ser o Ministério da Saúde/Comissão Nacional de Luta Contra a Sida (e, diga-se de passagem, foi generosa a distribuição de preservativos durante a festa). "É certo que ainda encontro dificuldades em obter apoios das empresas, sobretudo quando há um igual [homossexual] do outro lado. Eles temem dar um passo em falso e ser denunciados. Mas nunca fui maltratado pelos tripeiros. No máximo, o que acontece é a empresa dizer que não tem verbas no momento", conta João Paulo, que sempre prescindiu de subsídios da Câmara do Porto. [Andréia Azevedo Soares]