Os novos excluídos
Nos dias que correm ficou bem mais fácil ser homossexual e vamos
conquistando cada vez mais direitos, e o que ainda há bem pouco tempo
parecia improvável, é hoje uma realidade que encaramos já com uma certa
naturalidade.
Pensando em termos de balanço final, o que de facto se ganhou ?
Provavelmente os homossexuais estão mais próximos da integração à
sociedade, podendo imitar os seus padrões, inclusive o casamento. Mas como
se trata de uma sociedade injusta por base, a liberdade conquistada é
falsa:
está sempre vigiada, em clima de permissividade controlada.
Agora os casais gays que vivam em comunhão de facto podem ter os mesmos
direitos dos casais heteros, mas, na grande maioria dos casos, têm de
continuar a fazer isso ás escondidas para não serem prejudicados pelo
preconceito.
A homossexualidade deixou de ser proibida em Portugal, mas quando a
policia quiser, (ainda) pode humilhar, maltratar e expulsar homossexuais
apanhados a engatar num parque, ou, simplesmente, por ter trocado dois
beijos num local publico, só para dar um pequeno exemplo.
O gueto homossexual geograficamente ampliado representa um ganho de
direitos bastante discutível. Ainda que seja um espaço conquistado para
a livre manifestação de comportamentos socialmente desviantes do
padrão, o gueto na verdade não deixa de ser, um lugar de bichas e
lésbicas, com tudo o que o implica de compartimentalizaçã e isolamento.
A "guetoização" concentrou um grupo determinado de pessoas num espaço
específico para "esse tipo de gente" - uma espécie de campo de
concentração com ar condicionado. Qual o custo ?
Em troca da ampliação do gueto e da relativa liberalização fora dele, há
pesados juros a pagar.
É sabido como na cena gay só se podem cumprir as necessidades imediatas do
consumo sexual: o foco de interesse concentra-se sobretudo abaixo da
cintura, ignorando o restante da capacidade humana.
Trata-se, portanto, de um controlo social menos aparente e mais
sofisticado: só se pode ser homossexual na fronteira exacta que abrange o
sexo.
Em outras palavras, ser-se homossexual reduz-se, lamentavelmente, a fazer
sexo.
Ora, o consumo de sexo passa pela garganta estreita dos padrões
"vendáveis" no mercado da carne, em clima de competição baseada no
exibicionismo. Criou-se para tanto um estereotipo, cada vez mais
implantado, de superbichas, quer dizer homens vendendo fantasias
exacerbadas, com base no tripé da virilidade, beleza e juventude.
Tal situação viabilizou um incremento desvairado do narcisismo, com todos
os elementos doentios e preconceituosos ai implicados.
Basta um passeio em qualquer ambiente gay para se entediar com o desfile
de barbies depiladas, exibindo a mesma virilidade teatralizada e músculos
artificiais, a partir de doses maciças de hormonas masculinas e do culto
ao ginásio, valores tornados superiores e absolutos.
Os mesmos corpos, os mesmos músculos, as mesmas poses...
E o antigo anseio por uma identidade, tão ciosa do direito á diferença,
resultou na obsessão generalizada de buscar no outro o mais igual
possível a si mesmo.
A padronização virou culto à igualdade. Ou seja, instaurou-se uma
uniformização de desejo. Ao mesmo tempo, o exibicionismo e a
auto-afirmação compulsiva levaram inevitavelmente ao infantilismo.
No limite, essa tendência da cena homossexual criou corpos esculturais em
série, capazes de uma intensidade erótica que dura só até a próxima
ejaculação, que por sua insatisfação exigirá outra, e mais outra, gerando
um efeito de obsessão.
Enquanto isso, os que divergem do padrão tornaram-se os vilões do gueto.
Quem são eles ? Os efeminados, os feios e os velhos, que são punidos com a
excreção e a estigmatização excludentes.
Assim, os valores homofóbicos voltaram reforçados, agora também exercidos
entre os próprios homossexuais.
E nem fora do gueto à salvação: basta correr os olhos pelos anúncios
sentimentais gays para se notar a mesma padronização - muitas vezes
acrescida daquela arcaica... "discrição".
Mais do que nunca, é preciso saber comporta-se, para não dar nas vistas.
Trata-se de um secreto desejo de se identificar com o padrão da
normalidade heterossexual. Em outras palavras, insuflasse ai um problema
de auto estima e rechaço do seu próprio desejo.
Como o perfil da normalidade é sempre muito rígido, apareceram outros
transgressores, os novos perversos, que vêm arcar com os juros, em
circunstancias por vezes comprometedoras. Para dar um exemplo, a
participação de bichas e travestis em paradas e festejos gays é cada vez
menos tolerada pela ala das "super bichas", por entenderem, que estes
"seres aberrantes" os impedem de mostrar ao mundo, de uma vez por todas,
que são pessoas "normais" e que, afinal, os "anormais", são apenas uma
pequena minoria, ou seja, "as bichas e os travestidos"...
Assim, em nome de um comportamento "mais adequado", instaura-se uma nova
classe de excluídos, entre os próprios homossexuais. Ou seja, substitui-se
uma velha normalidade por outra igualmente intolerante, exercida, em nome
de uma "normalidade" hipócrita.
É normal ver gays a exporem a ridículo outros gays por serem mais
efeminados assim como raramente entre estes se chama uma lésbica de
lésbica. O mais normal, é que um gay se refira a uma lésbica apelidando-a
de "fufa". Uma expressão reveladora de um ainda enorme preconceito contra
as lésbicas, essas eternas incompreendidas ?
Todos os gays, indistintamente, rejeitam os velhos (e estes, inclusive),
as bichas, os travestis, o sadomasoquismo, os gorduchos, as "fufas"...
Em resumo, a nossa sexualidade "liberada" ensinou-nos a excluir a
diferença. E estamos praticando a mesma ideologia exclusivista que
provocou as repressões de que somos vítimas. Não é preciso muito esforço
para perceber que vai articulando assim uma nova forma de controlo social,
em que os antigos "bandidos" tornaram-se policias uns dos outros.
Quer dizer, corre-se o risco de se passar directamente da agressão e
contestação para a aceitação e assimilação social, deixando do lado de
fora da estreita entrada o direito à diferença, esse trunfo maior dos
marginalizados.
Aquilo que eles poderiam oferecer à sociedade como o seu contributo mais
original - o ponto de vista das margens - começou a ser soterrado e
neutralizado, em troca da aceitação como "normais".
Assim, mais do que nunca, os desviados foram sendo chamados à ordem e à
discrição.
O risco, é que a luta pelos direitos homossexuais possa ter se resumido a
isso:
o direito de habitar um grande gueto e receber como herança a solidão,
eternamente à espera de um paraíso gay, que nunca vai chegar...
A solidão, irmã do tédio, torna-se assim a contrapartida ao
"igualitarismo". Quanto se ganhará e quanto se perderá ?
A resposta cabe ás próximas gerações de desviantes, ou integrados...
Campanha contra o preconceito
Somos todos travestis
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ver também:
Texto publicado no Jornal Expresso